
Senti-lhe a presença colada a mim, vinda do nada, corporizando-se nas sombras do parque de estacionamento batido pela chuva impiedosa e gelada. Deixou-se ficar num silêncio incómodo enquanto eu arrumava as sacas com as compras na mala do carro e depois, a voz rouca atirou-me o pedido: "Dona, uma moedinha para comer uma sopa..." Não respondi. Sentia-me inquieta, só ali estávamos eu e ele, naquela chuva triste que escurecia ainda mais o parque vazio. Apressei-me o mais que pude e pegava já na chave do carro, quando a pergunta me atingiu, como um soco: "És a X... não és?" Estaquei. Ele conhecia-me... Voltei-me devagar e olhei-o finalmente nos olhos, uns olhos tristes e escorraçados como os de um cão vadio... Procurei no fundo da memória aqueles olhos, tentei ligá-los a um nome, a uma época, a uma situação... reparei atentamente no cabelo encharcado, nas mãos cheias de feridas, no rosto esquálido e na boca desdentada que me sorria agora com ternura... e algo me doeu cá dentro. O nome dançou-me finalmente nos lábios, uma dança triste como a noite que nos abraçava num súbito desmoronar de recordações: Filipe. Nunca mais o tinha visto, talvez desde o baile de finalistas no casino da cidade, há muitos, muitos anos atrás... Era dos rapazes mais populares da turma, não por ser bonito, mas pelo carácter doce e pelo fantástico sentido de humor, um humor inteligente e sensível que torna as pessoas que o possuem o centro das atenções em qualquer contexto. Filipe. Um nome querido, descolado de um passado perdido, um nome que eu repeti devagar... Filipe. O colega que dava as alcunhas aos professores, que deixava copiar nos testes de Matemática, o único que fazia com perfeição o pino de braços na aula de Educação Física, o Delegado de Turma reeleito sucessivamente... Filipe. O único rapaz da turma que adorava o meu rosto sardento. E ficámos um pouco à conversa, falámos dos colegas que perdemos no rasto dos dias, dos sonhos rasgados, da heroína que o consome numa solidão vazia, da doença que o traz de mãos dadas com a morte, das desintoxicações frustradas em Espanha e em França, dos meses passados na cadeia, do filho que ele não conhece, da família que tudo tentou para o ter de volta... Falámos. Falámos muito. E quando finalmente nos despedimos, ele tinha os olhos cheios de lágrimas e disse-me baixinho: "Se soubesses há quanto tempo não me chamavam pelo meu nome e não me perguntavam por mim..."
Filipe. Um nome bonito, um colega querido que eu talvez não veja nunca mais, um ser humano inteligente e alegre, um jovem cheio de sonhos a quem o futuro sorria e que numa encruzilhada da vida, num momento cruel, fez as escolhas erradas.
A vida não perdoa os passos em falso, Filipe.
E agora, Filipe?