domingo, 22 de novembro de 2009

Arranja-me uma mentira...


Olha, fazemos assim: da próxima vez que eu perguntar tu mentes-me, arranjas uma mentira qualquer, uma mentira singela daquelas que não trazem mal ao mundo e atiras-me com ela sem hesitar, pendurada na curva do teu sorriso, como uma onda salgada... E eu finjo que acredito... Podes falar-me da alergia sazonal que nunca tiveste e eu até duvidarei das lágrimas que te vi enterrar na manga do casaco enquanto te prendia o cabelo com os ganchos e te perfumava os pulsos como tu gostas. Não foi impressão minha, havia uma angústia áspera que te embaciava o olhar, notei o tremor gelado preso à sombra dos teus gestos, por isso, inventa qualquer coisa, o que quiseres, conta-me do tempo frio, do vento e da chuva, da roupa que não seca e te enerva, amontoada na velha bacia castanha com rasgões tristes, que te custa tanto carregar... culpa o leite derramado num mar de espuma quente, agarrado às paredes do micro-ondas esquecido, o aspirador avariado, a chave partida ou uma lâmpada fundida num estouro imprevisto que te deixou o coração em sobressalto... Mas desencanta uma mentira, diz-me das catástrofes que vergam o mundo, as notícias negras e tão injustas dos telejornais, a morte inesperada do protagonista do livro que andas a ler, a noite mal dormida, a vizinha barulhenta que te sacode o silêncio, a torneira que pinga num lamento eterno... sei lá, qualquer coisa... Mas mente-me, inventa-me uma mentira que arrombe as portas do teu peito e deixa-me entrar por aí adentro... Deixa-me fazer ninho num lugar pequenino do teu coração onde eu possa ficar a contar-te histórias ou a cantarolar baixinho a tua canção preferida como tu me fazias quando eu era criança, até que o amanhecer exorcize essa dor que julgas conseguir esconder de mim.
Da próxima vez que eu perguntar, arranja-me uma mentira... Pode ser?

4 comentários:

Olívia Marques disse...

Oh! Quanta ternura... Tanta que fez rolar uma lágrima.
Bem sabes! Às vezes as verdades são mesmo "coisas" más.

Gosto de ti!

Um beijo

Anna disse...

Também gosto de ti, Olívia. Muito!
Um beijo

Akhen disse...

Passei por acaso e li
"Arranja-me uma mentira", é o que os filhos pedem às mães, com ternura, apenas para não verem tristezas nos seus olhos. E a mentira chega como perolas caindo dos olhos "Mas filho/a, a mãe não tem nada. Não te preocupes. A mãe não tem nada mesmo".
Se fosse a certas pessoas, eu poderia dizer outra coisa
"Mas arranjar-te uma mentira, mas como, se eu nunca menti!"

Anna disse...

Akhen, mesmo tendo passado por acaso, obrigada por teres parado e por teres deixado as tuas palavras.

:)