domingo, 11 de outubro de 2009

Os muros da memória


Não nos víamos todos há muitos, muitos anos. Talvez por isso, as expectativas do reencontro eram enormes, a ansiedade muita, a alegria visível em cada par de olhos que percorria a imensa sala buscando alguém com quem ainda não se cruzara. Reparei nisso mesmo, que toda a gente procurava alguém. Durante a noite abracei amigos e colegas, conheci pessoas, ouvi relatos breves de vidas desencantadas, vi fotos de famílias felizes e paralisei também eu o tempo, roubei-o ao esquecimento dos dias com a minha máquina fotográfica... E de repente, no meio da multidão, o dono daquele rosto que já há algum tempo me olhava fixamente, disparou: "Tu és a XXX". Demorei-me mais atentamente no par de olhos azuis que me fitava, e... nada. Nenhum nome me ocorria. Procurava desesperadamente no fundo da memória algo de familiar, uma recordação qualquer que me tirasse daquele momento constrangedor, até que ele vendo a minha aflição, se identificou com um sorriso tímido. O nome bastou, apenas o nome, como uma janela aberta, escancarada sobre um passado que eu não sabia que ainda guardava, para trazer todas as recordações de volta. Era um colega adorável, muito doce, amigo de toda a gente e que eu adorava também. Andava sempre com uma viola e animava os tempos mortos entre as aulas tocando e cantando fado. Cantava-o de modo sentido, os olhos muito azuis fechados sobre si próprio, com uma voz maravilhosa que toda a universidade conhecia e parava a escutar, num enlevo tornado respeito. Sentámo-nos a conversar e notei o brilho apagado do olhar, a voz sem o entusiasmo de outrora, uma qualquer mágoa que lhe teimava nas palavras... Percebi que a vida lhe tem sido madrasta... E de repente entristeci. Ao longo de todos estes anos, nem uma só vez, uma única vez, eu me lembrei deste amigo que adorava, nunca o meu pensamento se demorou nele, nem quando evocava as serenatas ou os encontros académicos... Mas ele lembrava-se... ao longo dos anos ele interrogou-se sobre o que me teria acontecido... E o meu esquecimento tinha-o feito sentir-se mal. Não consegui evitar um sentimento de culpa pelo apagão na minha memória e saí dali com a certeza dolorosa de que é verdade que sabemos sempre quem nos fere, mas nem sempre sabemos a quem ferimos.

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