quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Ó Stora...

 
Era uma aula de oficina de escrita. Eles escreviam concentrados, tentando fazer nascer nas folhas dos cadernos um texto que correspondesse às indicações de trabalho. Era uma proposta difícil, reconheço, mas gosto de puxar por eles, gosto de ver até onde conseguem ir nas suas asas, motivados por mim e pela fasquia que elevo sempre um pouco demais... Escreviam presos à sua própria imaginação, cada um no seu mundo silencioso, debruçados sobre si próprios, perdidos no surpreendente universo das palavras. Mas não havia silêncio na sala. Nunca há silêncio numa sala de aula, mesmo que ninguém fale, e isso só um professor sabe. Eu andava no meio deles, atenta ao que faziam e à maravilhosa música que só conhece de cor quem é professor: uma caneta que cai, um lápis aguçado apressadamente, o roçagar das folhas dos cadernos, as mãos que limpam os restos da borracha que apagou o erro, o fecho de um estojo que se abre e o tilintar das canetas debaixo dos dedos que buscam a esferográfica que fará a caligrafia perfeita, uma cadeira que se arrasta subitamente, um breve tossir, um nariz que funga, o rasgar nervoso de uma folha para recomeçar tudo de novo, um rascunho amassado com frustração... Sons como música que conheço de olhos fechados e que se repetem ano após ano, desde o primeiro dia em que comecei... E gosto desta música sempre igual, sempre diferente, sempre familiarmente melodiosa e ritmada... Gosto de andar no meio deles, de me debruçar sobre os seus ombros, de lhes desenhar nos cadernos um sorriso quando trabalham bem, de corrigir e refazer frases, de repontuar, de acentuar, de substituir palavras... Gosto de passar por eles e de os acarinhar, de os incentivar, de lhes provar que afinal era fácil o que eu tinha pedido. E então eles chamam-me constantemente, querem ser os primeiros a mostrar os textos, pedem para depois os deixar ler em voz alta, é sempre assim, sei-o antes de mo perguntarem. Sei quando estão a terminar, que tudo será como sempre: "Ó Stora, já acabei, pode chegar aqui?" e que terá sido o fim da música que só eu ouço e estará para sempre rasgado o silêncio quando alguém resmungar "Ó Stora, mas eu chamei primeiro...!".

6 comentários:

Gustavo disse...

O seu texto fez-me lembrar um grande filme “El secreto de sus ojos” e concretamente uma cena onde se diz «El tipo puede cambiar de todo, de cara, de casa, de familia, de religion, de Dios. Pero hay una cosa que no puede cambiar... No puede cambiar de pasion.»
Admirável a sua paixão pelo ensino e pela escrita, a sua paixão por incentivar os alunos a descobrir os seus próprios mundos, admirável esse “silêncio” afinal tão fecundo…
Admirável a paixão que nos transmite ao escrever.

Anna disse...

Conheço a citação, Gustavo. Não, não podemos mudar ou matar uma grande paixão. Não se mata o que vive dentro do peito. E a escrita e o ensino são paixões antigas e imortais.
Mais uma vez, obrigada por se demorar por aqui, e pela simpatia dos seus comentários. :)

Lídia Borges disse...


Um sabor a tanto!...
Uma saudade a enrubescer, ardente, no meu peito.

Obrigada!

Beijo

Mar Arável disse...

Uma ternura

Anna disse...

Eu sei, Lídia. Tu entendes...

Beijos, tantos!

Anna disse...

Um abraço, Eufrázio.

:)