terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Tudo o que não digo

 
Não me leias as palavras... Lê antes os meus silêncios, a voz suspensa no avesso dos lábios, os gestos que me escorregam das mãos quando me julgo a sós comigo... Lê os meus passos lentos, subindo e descendo as escadas sem ruído, no fim de um pesadelo que me deixa o coração sufocado de terror... Lê a minha alegria quando ouço as aves ao amanhecer, ou adivinha-a nas mãos cheias de terra negra e molhada das raízes das azáleas que plantei no jardim... Lê-me no rosto cheio de chuva, nos caracóis dos cabelos desalinhados pelo vento quando recolho a roupa do varal, no brilho dos meus olhos sempre que abro a porta do forno e rego o assado com vinho tinto, no doce de maçã com canela da receita da minha avó... Lê-me na ternura das mãos tranquilas quando acaricio o gato, enroscada na música do ronronar tão calmo... Lê-me nos caminhos por onde ando, nas conchas e nos búzios que roubo ao mar, nas danças dos meus pés ao cair da noite antes da casa adormecer suavemente... Lê-me na saudade inconsolável dos meus mortos e na forma como amo os vivos, lê os meus erros e as minhas derrotas, as esperas pacientes e infinitas, lê as minhas pequenas vitórias... Lê-me quando eu tombo, derrubada, e também de todas as vezes que me reergo ferida...
Não me leias nos poemas, na prosa, nas frases riscadas à pressa na lista das compras, nas folhas que deixo ao abandono, nos desenhos que o meu dedo traça nas vidraças embaciadas... Lê o meu corpo, quando me encosto às sombras de olhos fechados, lê o rasto do meu perfume no corredor da casa ... Lê o que não digo, todos os dias. Lê o que não escrevo, meu amor.

12 comentários:

Anónimo disse...

É nestas altura que agradeço a oportunidade que a vida me deu de aprender a ler. De outra forma, como poderia sentir o teu perfume, escutar o ronronar almo do teu gato, apreciar as tuas mãos feitas de terra e raíses ou as pegadas que cravas pelos caminhos da vida...

Respeitoso beijinho de boa noite, "Stora"...

;)

PS: Às vezes ao lê-la lembro-me do Clube dos Poetas Mortos...

;)Carpe Diem!

Gustavo disse...

Leio-a, em silêncio, e contemplo, enternecido, a nudez da sua alma!
Abraço.

ORPHEU disse...

Sem palavras, sou só admiração... Está comprovado,há um rio de palavras que corre dentro de si, uma alma de poeta que deve mostrar-se ao mundo.
Escreva um livro, escreva muitos livros, todos os livros possíveis.

Mar Arável disse...

Sopro-te

e voo

Bjs

Maria Campos disse...

Esta é realmente a PAULA!

Adorei este poema de amor, miguinha!

Um beijo carregado de conchas e de búzios e de corações...

Anna disse...

Caríssimo,
Sempre tão gentil nos elogios... Sinto-me honrada pela associação ao Clube dos Poetas Mortos... Um dos filmes da minha vida que me leva às lágrimas sempre que o revejo (sou uma chorona, pois sou... :p)

Carpe diem, Caríssimo :) Tenha uma noite serena.

Anna disse...

Pois é, Gustavo... Os textos "espelho" às vezes queimam-me os dedos, fazem-me sangrar a alma... e têm de ser escritos.

Abraço retribuído :)

Anna disse...

ORPHEU,

Vou tentar, quem sabe...
Obrigada pelo elogio, tinha saudades de o sentir por aqui.

:)

Anna disse...

Bons rumos, Eufrázio.

:)

Anna disse...

Maria,

É um poema de amor, sim.
Tu sabes...!

Beijos, muitos :)

Lídia Borges disse...


Às vezes, até as palavras mais leves são pesadas para a delicadeza de certos sentires.

Um abraço

Lídia

Anna disse...

Abraço-te também, Lídia.

Deixo-te o meu beijo.