
A minha vizinha comprou um piano. Quando hoje ouvi as notas tímidas pela primeira vez, parei o que fazia e escutei surpresa e encantada, a cabeça inclinada atrás da claridade do som que atravessava as paredes e se insurgia na quietude matinal, como um sorriso de sol ou um roçagar de asas de pássaro... Era mesmo um piano. E a pedra da memória soltou-se com suavidade, transportou-me a tantos anos atrás, quando era criança e fazia a pé o caminho até à praia, por uma ruazinha apertada e ventosa, sombria, onde quase ninguém passava. Eu gostava daquela rua, do empedrado que fazia soar alto os meus passos de criança e brincava com o som que ecoava do meu caminhar. A meio da rua morava uma pianista idosa que dava aulas de piano a crianças e o som daquele piano enchia o percurso de sol e alegria, de espanto e magia... Às vezes ouvia-a ralhar... mas mesmo assim, desejava poder ser uma das suas alunas e sentar-me ao piano daquela casa, arrancar melodias encantadoras, como por magia, das teclas que me chamavam. Ao cair da noite, quando regressava da praia, era já a própria pianista quem tocava, finalmente liberta da obrigação das aulas e entregue à fluidez do seu próprio sentir, a janela escancarada sobre a rua, como se quisesse generosamente oferecer a música aos passantes... A rua brilhava de luz com aquele som fantástico, tornava-se subitamente mais bonita e quente, o meu coração de criança sorrindo num turbilhão de encantamento... E então parava em frente à janela e sentava-me no passeio de pedra fingindo apertar as sandálias, os meus dedos simulando os gestos da pianista, os olhos parados nessa viagem que me acontecia dentro do peito...
Ouço-o agora, o piano da velha pianista que me encantava... ou será o da vizinha, gemendo sob os dedinhos inseguros da filha mais velha? Pouco importa... Páro de novo e escuto... Abandono o que fazia e escuto apenas... e as memórias que trazia guardadas, como se me beijassem a pele num arrepio, voltam em melodias de sorrisos e enchem-me de uma alegria calma e inesperada...