sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Cá dentro


Falavas tantas vezes delas, avó. Na altura eu era pequena e não entendia o que dizias enquanto me abotoavas a fileira de botões pequeninos em forma de coração, nas costas do vestido de chita florido. O assunto incomodava-te, moía-te os nervos como um dia húmido de nevoeiro. Respingavas nervosamente as palavras e terminavas com responsos quase inaudíveis enquanto me davas a laçada perfeita no vestido. Eu sentia-te zangada, a fúria contida a custo, disfarçada na ponta dos dedos enquanto ajeitavas os crisântemos na pesada jarra de vidro vermelho da sala de jantar. Hoje já as conheço, avó, as pessoas de que me falavas tantas vezes. E sabes, também me incomodam... Também me irritam com a iniciativa de dar conselhos em tom paternal, os lábios cínicos pejados de sabedoria e pena... Também me enervam as pessoas extremamente sábias, que vivem vidas perfeitas em mundos ilusórios e que gostam de aconselhar os outros, depositando pancadinhas consolatórias em ombro alheio. Eu não as compreendo. Mas sei que não fazem por mal, avó, elas apenas se esquecem que as pessoas não são todas iguais... Imagina só que trabalheira, pensar que somos todos diferentes! Elas não sabem, avó, das portas fechadas de cada um, dos abismos, dos oceanos de inquietude e dos desfiladeiros no peito dos outros... E tu sabias porquê, tu dizias que elas só se viam e ouviam a si próprias, o umbigo no centro do mundo... Tinhas razão. E é por isso que quando me dão conselhos que nunca pedi, eu fecho as mãos em punho, escondo-as nos bolsos para que ninguém me adivinhe a ira e o desconforto, e não digo nada. Lembro-me de ti e deixo-as lá...Porque elas não fazem por mal.
Saudades de ti, avó...

2 comentários:

Anónimo disse...

Elas não sabem, avó, das portas fechadas de cada um, dos abismos, dos oceanos de inquietude e dos desfiladeiros no peito dos outros...

E são mais que muitas...

Beijinhos do Porto

Anna disse...

Um beijinho, Kleine Hexe, obrigada pela visita.
:)