terça-feira, 22 de abril de 2008

As asas do Amor


A aula deslizava serena, embalada pelas gotas de chuva que soavam fortes nas vidraças, nublando de liquidez parda esta manhã de Primavera esquecida. Um aluno esforçava-se por conseguir emprestar à leitura toda a ironia mordaz do Eça de Queirós. E eu, que conheço o texto de cor, disfarçadamente espiava-lhes as reacções, tentava adivinhar a motivação, procurava o interesse que a leitura exigia. Vi então o Francisco rabiscar uma ou duas frases na folha do caderno que arrancou silenciosamente, dobrou com cuidado em quatro e escondeu na palma da mão. A situação não é invulgar e eu nunca sei como vou reagir. Aguardei pois. Pelo canto do olho, vi-o estender o braço para a carteira de trás e observei o início da viagem que faria aquela missiva... A leitura prosseguia e a chuva ganhava força, juntava a sua voz molhada a uma onda solidária que levaria aquele bilhete ao seu destino. Eu continuava a gerir a aula, tentando que nenhum olhar ou gesto denunciasse a minha conivência e secretamente tentava adivinhar o destino do papelinho. Ia já na segunda fila e após uns minutos de espera intranquila, atravessou para o corredor de carteiras encostadas à janela. Aí teria que parar. Aí desembarcaria numas mãos femininas que talvez o esperassem com impaciência. Apostei. E ganhei. Nas mãos da Beatriz, o papelinho viajante repousou enfim da atribulada peregrinação que sofrem todos os bilhetes de amor. E disfarçadamente, ela meteu-o no bolso do casaco de onde sairia para ser avidamente lido mal eu me virasse para completar o esquema no quadro. É sempre assim. Aos dezassete anos, o coração é inquieto demais, não pode aguentar a espera do redentor toque de saída que lhe permitirá ler com ansiedade palavras de amor escritas numa aula, ao sabor das farpas certeiras do Eça de Queirós. Nada mudou. Sabendo disto, virei-me para o quadro e completei o esquema inacabado, demorando talvez mais tempo do que o que seria necessário... Há coisas que um professor não deve ver, não deve acusar. E um bilhete de amor não se denuncia... esconde-se na mão em concha, com os olhos a brilhar e um sorriso estampado na voz... como um tesouro.
Nada mudou... ainda se escrevem bilhetes de amor durante as aulas e eles percorrem silenciosamente a sua rota debaixo do olhar cúmplice de um docente que de vez em quando, como nos palcos os actores, veste as roupagens de um anjo da guarda que lhes abençoa o voo e lhes acarinha o destino.

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