terça-feira, 27 de novembro de 2007

Lágrimas


E hoje, inesperadamente, vi-te. Tinha saído do trabalho feliz, com vontade de exercer o meu direito à futilidade e fui passear, ver montras, respirar o sol. Caminhava em ziguezague pela rua pedonal, cheia de gente como eu, sem pressa, solitária e distraída. E vi-te. Primeiro sem perceber bem que tu eras tu, algo vagamente familiar no teu rosto me denunciava o alarme da memória e precisei de alguns minutos para te situar no meu passado, em vidas tão longínquas e distantes que não me lembrava já de ter vivido. Até que, como o riscar de um fósforo, tudo se iluminou e as recordações aí estão, intactas. Tentei contar os anos de ausência...talvez vinte. Nem mais, vinte anos sem nos vermos, sem nos falarmos, sem saber de ti. Talvez por isso a tua imagem fosse como um soco, apanhado em cheio em desprevenido rosto. Os ombros curvados, a magreza cadavérica, a palidez de cera, os olhos sumidos num rosto todo ele dor, todo ele sofrimento, nada fazia evocar a menina feliz que então eras. Sentavas-te ao meu lado, éramos parceiras, lembras-te? Tinhas uma fita vermelha a segurar-te os cabelos que ia escorregando ao longo da manhã e que acabavas por abandonar ao lado do estojo. Ali pousada, era uma mancha escarlate gritando a alegria de cada letra, de cada número. Tinhas uma caneta que cheirava a morango e uma enorme borracha branca a que chamávamos sabonete e que o teu pai te tinha trazido de Espanha. E partilhávamos o lanche no recreio depois dos saltos à corda ou do jogo às escondidas. Trocávamos as pratinhas de chocolate que guardávamos entre as páginas dos livros como tesouros raros. Éramos como irmãs e prometemos nunca nos separarmos... Tu querias ser hospedeira... será que és?Ali paralisada, em plena rua, algo em mim desejava secretamente que não me reconhecesses, que nos meus olhos não lesses o terror de te saber tão doente... e a vida fez-me a vontade. Passaste sem me olhar e eu fiquei cosida com as montras, a ver-te afastares-te lentamente, como se carregasses contigo todo o infortúnio desta vida. Senti-me mal, muito mal. E agora sei que se não houvesse lágrimas nos meus olhos, se um nó terrível não me apertasse a garganta, te teria chamado, te teria convidado para um café onde pudéssemos escoar a saudade. Mas não consegui. O teu nome (tão raro, tão único! nunca mais conheci ninguém com um nome assim), ficou a pairar-me nos lábios e no coração. Não sei se voltarei a ver-te. Na minha dor, por mais que eu queira apagar a imagem, ficará a memória da tua silhueta esquelética afastando-se devagar, arrastando consigo a sombra da morte como um negro véu diáfano definitivamente preso aos teus ombros.

1 comentário:

sentidos de coimbra disse...

Afecto duro, este, que nos abraça a vida de quando em vez!

beijinho
cristina torres