quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Baron


Na vizinhança todos o conheciam. Fugia muitas vezes, aproveitando o momento em que o carro atravessava os portões escancarados, cosia-se com o negro dos pneus e esmagando o corpo contra o musgo das pedras da estrada, tornava-se invisível. Depois, numa correria desenfreada rua abaixo, perseguia os seus sonhos caninos que tomavam a forma de insectos, aves, ruídos e cheiros que só ele sabia. Ao fim de algumas horas voltava. Voltava sempre. Fazia-se anunciar ladrando feliz, quase sorridente e eu abria-lhe o portão a ralhar zangada as minhas preocupações... Discurso inglório e inútil. Ele entrava a medo, exausto, sedento, e ficava o resto do dia a dormitar, a cabeça entre as patas, um olho piscando preguiçoso, a cauda a abanar indolente, saciado nas suas aventuras de cão. Era um animal lindíssimo, de porte majestoso, que impunha um respeito discordante do seu carácter dócil e inofensivo como uma cria de passarinho. Já há uns anos o tinha perdido e foi um amigo meu, com um coração de ouro e uma incondicional paixão por bichos, que mo trouxe de volta ao fim de duas semanas. Estar-lhe-ei eternamente grata e nunca esquecerei o seu gesto, nunca!
Era só um cão, dizem-me alguns, a quem eu deixo escorregar a história para justificar o olhar mais triste. Não, não era só um cão, era o meu cão e sinto-lhe imenso a falta. Cá em casa, o seu companheiro de eleição, o seu humano preferido, era o meu filho. Não lhe dava descanso, correndo mais veloz do que os patins, do que a bicicleta, tentando superar o salto do skate, voando atrás das bolas que se dedicava a roer exemplarmente quando ficavam abandonadas, esquecidas, após as brincadeiras febris. Odiava pássaros, sobretudo os melros que vinham corajosamente roubar-lhe a comida e desatava então num ladrar possesso e ensurdecedor, confessando a sua impotência numa fúria incontida que nada conseguia aplacar. Tinha uma estranha relação com o gato, reconhecendo-lhe humildemente a antiguidade e a soberania. De vez em quando abocanhava-o com meiguice, apertando-o entre as patas e às vezes, deitavam-se ambos, pachorrentos, à porta da casa inundada de sol. Eu gostava de os observar nestas alturas, eram a prova de que não há relações impossíveis, de que mesmo as mais improváveis, às vezes são verdade.
Já passou uma semana e o Baron ainda não voltou. Quando vou na estrada, demoro ansiosamente os olhos nos campos despidos, nas estradas geladas, procuro nas sombras para além da chuva, do nevoeiro, na esperança de descobrir o seu vulto negro, de o reencontrar, cheio de fome e sede, talvez doente ou ferido... mas vivo. Julgo ouvi-lo ladrar no silêncio de pedra que se ergue com a madrugada e saio atrás dos ecos de um latir que existe só na minha memória. Não consigo apaziguar esta tristeza olhando a casa mais fria, mais vazia, mais pesada de preocupação e angústia. O coração humano é assim... frágil perante perdas, perante ausências. Acho que nunca me habituarei a perder pessoas, bichos, memórias... nunca me habituarei a perder afectos, a perder o Amor, seja qual for o rosto com que ele se vista.

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