sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Ilhas


Hoje finalmente conseguiste falar.
Disseste tudo, sentada na minha frente, os olhos baixos, duas lagoas de água doce ameaçando transbordar, tornar visível a dor que te roía. Falaste baixo e calmamente, mas as palavras saíram numa torrente inesperada, sem precisares de as escolher, de as procurar. Saíram-te. Assim, como quem abre uma porta encerrada há muito e deixa entrar a vida em jorros de luz.
Eu já sabia sem que mo tivesses dito antes. Chama-lhe intimidade. Coisas evidentes aos olhos de quem nos vê e invisíveis para quem só olha para nós. E eu tinha já percebido a falta de brilho, de luz, no teu sorriso; o constante morder dos lábios; os círculos negros emoldurando-te o olhar distante, traindo as noites mal repousadas; o tremor das mãos; o salto brusco quando te chamavam de repente ou quando o tom era mais alto, mais imperioso; os esquecimentos constantes numa profissional irrepreensível; o verniz escarlate lascado nas bordas; a raiz do cabelo sem retoque de cor há tempo de mais; até o teu casaco, de bom corte como todas as tuas roupas, denunciava vincos e rugas de uma alma esquecida de si... E hoje finalmente contaste-me. Sem que eu to tivesse pedido, sentada na minha mesa, brincando distraidamente com a chávena de café já fria, já esquecida, lavaste a alma e o olhar. Ao ouvir-te, foi como se me estivesse a ouvir a mim própria, a tua voz ecoava dentro de mim num dueto ensurdecedor que calava tudo o resto à nossa volta. Eu pouco ou nada disse, mas senti-me aliviada como se da minha alma se tivessem exorcizado também segredos e dores pesados de mais, carregados de mais...
E quando te levantaste e partiste, fiquei sozinha com a mágoa infinita de que o mundo não devia ser assim, um lugar deserto, implacável, onde cada ser humano é uma ilha isolada e perdida, esgotando-se e consumindo-se na sua própria dor, à vista de todos e sem ninguém ver. Diariamente.

2 comentários:

Anónimo disse...

Lembras-me uma marcha de lisboa
Num desfile singular,
Quem disse
Que há horas e momentos para se amar

Lembras-me uma enchente de maré
Com uma calma matinal
Quem foi
Quem disse
Que o mar dos olhos também sabe a sal

As memórias são
Como livros escondidos no pó
As lembranças são
Os sorrisos que queremos rever, devagar

Queria viver tudo numa noite
Sem perder a procurar
O tempo, ou o espaço
Que é indiferente para poder sonhar

Quem foi que provocou vontades
E atiçou as tempestades
E amarrou o barco ao cais
Quem foi, que matou o desejo
E arrancou o lábio ao beijo
E amainou os vendavais

Anónimo disse...

És um amor,Paulinha...