
Sento-me no chão do escritório com as pernas à chinês e encosto-me à cal branca, agradavelmente fria. Demoro os olhos pelas estantes carregadas de livros que agora, depois de horas de arrumação e limpeza me sorriem felizes, espreguiçando-se nos seus espaços. Tudo está em ordem, à espera de um novo ano de trabalho. Só faltam as fotografias. Olho as pilhas que já fiz e que esperam pacientemente a minha organização. O chão está coberto de montinhos que me envolvem e me chamam... Decido-me finalmente pelas fotos a preto e branco. Vou separando devagar, por anos, chamando a memória, recuando dentro de mim. E de repente, páro. Entre as minhas mãos, a mais bela foto que possuo olha-me sorrindo, cheia de brilho que o peso dos anos não matou. É uma ampliação em tamanho A4, de grande qualidade, em papel brilhante. Na imagem todos sorriem: os meus pais, que se olham ternamente nos olhos, eu e os meus irmãos, os três de mãos dadas com olhos felizes e expressões inocentes, deliciosas. O meu pai segura no colo um lindíssimo cão branco de pêlo longo e macio, cujo nome eu não recordo... E de repente regresso a Luanda e sou pequenina de novo, brinco todo o dia quase sem roupa num jardim muito verde carregado de palmeiras e estrelícias gigantes, às escondidas e em loucas correrias com os meus irmãos e tenho o quarto cheio de bonecas e como frutos das árvores e sinto o cheiro do cacimbo e tenho medo das trovoadas, dos relâmpagos e dos trovões que parecem destruir o meu pequeno mundo onde sou tão feliz... De repente, o meu pai não morreu e eu sento-me no colo dele que brinca com os caracóis dos meus cabelos até que eu adormeça, cansada de brincar...
Coisa estranha, o coração da gente... Às vezes foge-nos, sai-nos do peito num alvoroço que faz doer e corre veloz por cima dos anos, sem se cansar... Mas quando regressa, vem diferente. Traz feridas que sangram e cicatrizes que não fecham, testemunhas fiéis de que as emoções humanas são impossíveis de comandar. Por isso o respeito tanto, o meu coração. Por isso o deixo em voo livre pelos labirintos do tempo, levantando as pedras da memória, arranhando o musgo gelado da saudade... E quando ele regressa, verifico que pulsa ainda, num bater aflito e descompassado... Recolho-o com carinho e aninho-o dentro do peito, encaixo-o entre os meus seios...
Sorrio. E limpo a fotografia com a palma da mão para que o sal das lágrimas não a manche para sempre.