terça-feira, 23 de outubro de 2007

O Brilho da Memória


No fundo da minha memória, há um baloiço de madeira preso ao tecto do sótão com grossas cordas cheias de nós, como os cabos de um navio.
No fundo da minha memória, há um sótão cheio de sol, com tábuas carcomidas, baús repletos de roupa velha, mobília gasta abandonada a um canto e uma simpática e barulhenta máquina de costura onde eu encostava a barriga vendo os tecidos transformarem-se em peças de roupa que estreava ao domingo.Há batatas polvilhadas com remédio de escaravelho, tapadas com jornais, a cobrir o chão.Há revistas amarelecidas, recortadas, com páginas ternamente dobradas nos cantos e empilhadas como um castelo de sonhos.
No fundo da minha memória, há uma velha escada de madeira que rangia sob o peso dos meus passos felizes e um corrimão onde eu mergulhava sem medo para desaguar incólume no rés-do-chão.
No fundo da minha memória, há uma casa antiga que cheirava a cevada quente e torradas com manteiga, há o som de um rádio cantarolando baixinho, há uma televisão a preto e branco coberta com um pano de crochet e uma salinha de estar pequenina, com a parede do fundo coberta até ao tecto de estantes com livros, perfeitamente agrupados por números e colecções.Há um sofá de couro onde eu me perdia em viagens infinitas, nas asas das palavras dos poetas.Há os óculos do meu avô, abandonados sobre a mesa, ao lado de um cinzeiro de porcelana pintado de azul e branco.
No fundo da minha memória, há um quartinho minúsculo, sem janelas, onde contrariada dormia a sesta e onde a avó me colocava sobre um banco e me ajustava ao corpo os vestidos que costurava com amor e a boca cheia de alfinetes...
No fundo da minha memória, há uma cozinha de mármore que cheirava a leite creme coberto de açucar, queimado com uma pá de metal.Há louça de barro pintado com provérbios e dizeres que eu não entendia...
No fundo da minha memória, há um quintal plantado com esmero e amor, onde o cebolo, a salsa e as couves rebentavam num grito viçoso... e há canteiros pequeninos com margaridas, dálias, rosas e crisântemos que se erguiam ainda orvalhados, fulgindo ao sol, a rebentar de exuberância.Há uma capoeira com galinhas poedeiras que eram cruelmente mergulhadas em tinas cheias de água quando ficavam chocas.E todas elas tinham nome, as galinhas da minha memória e eu passeava-as com um cordel nos intervalos da caça aos caracóis, joaninhas e borboletas, que perseguia com a alegria ensurdecedora dos meus saltos de criança.
No fundo da minha memória, há um tanque de pedra, tapado com uma tábua para não se transformar em abrigo dos gatos vadios, onde a avó lavava roupa, batendo-a com força, esfregando, torcendo, enxugando, com a língua de fora...
No fundo da minha memória, há uma bicicleta cor-de-laranja com as rodas pintadas de branco, partilhada nos fins de tarde, quando os deveres estavam feitos...
No fundo da minha memória, há um colo onde eu me sentava limpando o sangue e desinfectando os arranhões e as feridas das batalhas diárias... e há um colo onde eu me aninhava cada noite, rezando baixinho ao Menino Jesus e ao Anjinho da Guarda, antes que o sono e o cansaço me fizessem cerrar as pálpebras no abraço sereno em que me abandonava...
No fundo da minha memória, há um brilho doce, uma luz suave que me norteia, que me conduz de regresso aos lugares a que pertenço e desenha a rota do meu marear, afastando-me dos rochedos quotidianos, alertando-me para os perigos onde o meu peito se possa despedaçar.

Assalta-me às vezes o medo de romper o fundo da minha memória e deixar fugir as recordações, uma a uma, em revoadas de luz que me deixem depois os passos perdidos na escuridão...

Que medo angustiante sinto às vezes, de perder o brilho da minha memória!

1 comentário:

sentidos de coimbra disse...

Palavras grandes, macias enlaçadas em ternura e amor.

Agora, estou a sorrir com o teu brilho no meu olhar, desta forma, não o vais perder!

cristina torres