segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Crónicas do Vento Salgado


Mudei de casa há pouco mais de um ano. Foi amor à primeira vista, esta casa pequena, cheia de sol, encravada num bairro tranquilo e moderno. Não conheço os meus vizinhos. Nem os da frente, nem os de cima, nem os de baixo. Temos horários diferentes e nunca nos cruzamos no elevador ou nas garagens. O meu conhecimento dos meus vizinhos resume-se a sons, coisas que oiço e que, um ano depois, me vão sendo familiares. Sei que por cima de mim vive um casal com duas filhas, é o pai quem dá banho às crianças enquanto a mãe faz o jantar. Ouço-lhes as vozes, os risos, as correrias com os pés descalços, os brinquedos que caem ao chão, a banheira a encher-se de água ao fim do dia, a televisão no canal Panda. Mas não lhes conheço os rostos. 
O apartamento por baixo de mim está fechado durante a semana. Só à sexta-feira à noite se enche de vozes, duas, por vezes três vozes diferentes. Ao fim de semana há portas a bater, persianas que se levantam ruidosamente, muito barulho com as louças na cozinha por baixo da minha. Quem são estas pessoas que chegam à sexta e partem ao domingo à tarde, permanece um mistério para mim, neste ano em que cá vivo. No entanto, noto-lhes a ausência se em algum fim de semana o apartamento permanece silencioso, como a boca negra de uma gruta fria.
E depois há o vizinho da frente, aquele sobre quem eu sei mais coisas, de todos os meus vizinhos. Chega tarde, muito tarde, e compensa o ruído do elevador com um bater a porta de mansinho. Vive só. Janta quando chega, mas está pouco tempo na cozinha, e não vê televisão. O meu vizinho da frente ouve música clássica, baixinho, sem interrupção. Está muito tempo na varanda encostada à minha, e sinto-lhe o cheiro do cigarro. Ouço as mensagens que lhe entram no telemóvel e muito raramente, fala ao telefone - conversas rápidas e tardias. O meu vizinho da frente faz-me sempre evocar o poema "Regras do Esquecimento", em especial o verso Não esqueças sobretudo de olhar devagar. Não sei porquê. Talvez porque o ache uma ilha distante, ou um náufrago numa ilha distante, não sei bem... Talvez porque o meu vizinho da frente é misterioso no seu viver, sempre igual, mesmo aos fins de semana quando os de cima cantam a quatro vozes e os de baixo abrem janelas com vigor. 
Todos os dias eu tento, como no verso do Vasco Gato, ouvir devagar o que me chega para além das minhas paredes pintadas de amarelo clarinho: às vezes escrevo histórias sobre os meus vizinhos. Mas ao vizinho da frente dei um nome que não sei se ele tem, um rosto com rugas que talvez não existam; aprisionei-o numa estória bonita, por onde ele anda com passos lentos e serenos, ao som de uma música suave e com o luar pousado nos ombros, como o homem eternamente preso na lua - das histórias que a minha avó me contava como segredos.

16 comentários:

Elvira Carvalho disse...

Um texto lindíssimo,uma prosa poética, que de prosa só tem a forma. Adorei ler. Parabéns.
Um abraço e bom Carnaval

Lídia Borges disse...


Estas crónicas estão mesmo a pedir para serem para serem divulgadas aos sete ventos.

"Crónicas do Vento Salgado" para o prelo, já!

Beijinho

Lídia

Anónimo disse...

Caríssima Stora, não vou repetir o comentário já tantas vezes repetidos...insisto apenas no respeitoso beijo, se mo permitir... ;)

O Puma disse...

... entretanto o meu neto festejou o Carnaval no Jardim Zoológico

Anónimo disse...

Caríssima Stora, não é que este livro, http://www.caminho.leya.com/pt/infantil-juvenil/7-9-anos/uma-escuridao-bonita/, me fez lembrar a forma como eu "leio a sua escrita" e como "imagina que sonha"...

Respeitoso beijinho ;)

Anónimo disse...

Caríssima Stora, sou eu de novo...

Hoje deu-me para me demorar um bocadinho mais por aqui e fazendo uso ma minha já fraca memória e com a ajuda da janela para pesquisar que fez o favor de colocar no canto superior esquerdo do blog e que eu estranhamente só hoje descobri, revisitei este seu texto: https://wwwdeprofundis.blogspot.com/2010/10/o-stora.html .
Eu já a leio há uns tempos...
E continuo a apreciá-la. ;)
Escreva. Escreva muito. Sinta. Sinta ainda muito mais...

Desta vez despeço-me mesmo. Respeitoso beijinho. ;)

Anna disse...

Obrigada, Elvira! Deixo-lhe um beijo e desejo-lhe um bom fim de semana!

Anna disse...

OHHHHHHH... Quem sabe, Lídia...?
Obrigada!

P.S. - Espero por ti nas Correntes, tu sabes!)

Anna disse...

Puma, que bom para o seu neto...! Ele terá talvez aprendido que no Carnaval da vida estamos muitas vezes rodeados de feras que vivem à solta, longe das jaulas, e são más e cruéis para os outros, só porque sim...
Um beijo para o seu neto :)

Anna disse...

Caríssimo, nem sei o que hei-de dizer... Obrigada, obrigada, obrigada!
Tantos anos já...
Grata pela sua companhia :)

Beijo

Anna disse...

Caríssimo, esqueci-me de dizer: eu amo o Ondjaki. Ser comparada com ele é uma honra gigantesca, mas imerecida.

Beijos :)

Jaime Portela disse...

Adorei a narrativa acerca dos vizinhos.
Se continuar, dá um romance, porque a especulação pode ser levada quase ao infinito e criatividade não lhe falta.
Parabéns, já não vinha aqui há imenso tempo e fiquei (re)encantado.
Bom fim de semana, Anna.
Beijo.

Anna disse...

Talvez continue, Jaime :)

Obrigada pelo carinho!

Anónimo disse...

"...apaixonara-se desde cedo por Luanda, por causa do mar salgado

chamava o mar de 《mar salgado》..."

O "seu amigo" Onjaki imaginou um personagem com a "alma" da Anna...

;) "Candando"

Anna disse...

Caríssimo, graças a si já tenho uma missão especial para estas Correntes D'Escritas: procurar o Ondjaki, persegui-lo, se preciso for, e enchê-lo de beijos!

Obrigada! :)

Anónimo disse...


Metade*


Que a força do medo que eu tenho,
não me impeça de ver o que anseio.

Que a morte de tudo o que acredito
não me tape os ouvidos e a boca.

Porque metade de mim é o que eu grito,
mas a outra metade é silêncio...

Que a música que eu ouço ao longe,
seja linda, ainda que triste...

Que a mulher que eu amo
seja para sempre amada
mesmo que distante.

Porque metade de mim é partida,
mas a outra metade é saudade.

Que as palavras que eu falo
não sejam ouvidas como prece
e nem repetidas com fervor,
apenas respeitadas,
como a única coisa que resta
a um homem inundado de sentimentos.

Porque metade de mim é o que ouço,
mas a outra metade é o que calo.

Que essa minha vontade de ir embora
se transforme na calma e na paz
que eu mereço.

E que essa tensão
que me corrói por dentro
seja um dia recompensada.

Porque metade de mim é o que eu penso,
mas a outra metade é um vulcão.

Que o medo da solidão se afaste
e que o convívio comigo mesmo
se torne ao menos suportável.

Que o espelho reflicta em meu rosto,
um doce sorriso,
que me lembro ter dado na infância.

Porque metade de mim
é a lembrança do que fui,
a outra metade eu não sei.

Que não seja preciso
mais do que uma simples alegria
para me fazer aquietar o espírito.

E que o teu silêncio
me fale cada vez mais.

Porque metade de mim
é abrigo, mas a outra metade é cansaço.

Que a arte nos aponte uma resposta,
mesmo que ela não saiba.

E que ninguém a tente complicar
porque é preciso simplicidade
para fazê-la florescer.

Porque metade de mim é plateia
e a outra metade é canção.

E que a minha loucura seja perdoada.

Porque metade de mim é amor,
e a outra metade...
também


(*) Ferreira Goulart (poeta Brasileiro, 1930-2016)