domingo, 22 de maio de 2016

Crónicas do Vento Salgado


Do outro lado da rua - num 1º andar  soalheiro -, mora uma velha cega. Daqui só consigo ver a porta e talvez metade da cozinha, através dos vidros da varanda marquizada onde há uma janela que nunca se fecha. 
À tarde, a velha senta-se numa cadeira baixa e, durante horas, sega as couves que alguém lhe deixa ficar dentro de enormes alguidares de alumínio. E, de alguidar em alguidar, mecanicamente, as couves são segadas devagar, por mãos engelhadas cujo tino não é ditado pelo rumo dos olhos. Quando termina um alguidar, a velha cega enche saquinhos de plástico com as tirinhas finas de couve que alguém comprará apressadamente no mercado da cidade e servirá depois, à mesa de um restaurante ou talvez em casa, transformadas em caldo verde saboroso. Findas as couves, a velha cega lava as mãos na torneira de um pequeno tanque, debruça-se sobre a janela que nunca se fecha, bate palmas e chama: "Faísca! Faísca...!". E se ele se demora, bate palmas de novo, de novo volta a chamar: Ó Faíscaaaaa...!". Mas quase nunca ele tarda, aparece correndo, salta os telhados e as varandas e entra pela janela que nunca se fecha. Então a velha recebe-o com sorrisos, senta-se na cadeira pequenina e fica com o gato no colo, passando-lhe a mão pelas costas, demoradamente, com os olhos cegos atirados para o sol do dia que se põe, os lábios movendo-se em prece, ou quem sabe, cantarolando uma canção triste... 
Na semana passada, quando cheguei a casa, reparei na janela fechada. Reparei na cadeira vazia. Reparei no silêncio da varanda... E era um silêncio tumular. Depois apareceu o Faísca, negro como breu, e durante horas miou desconsoladamente no peitoril da varanda do lado, chamando talvez a sua velha cega, reclamando da janela fechada. 
Hoje contaram-me na padaria que a velha cega não voltará mais. E não se fala noutra coisa, diz-se que há já muitas noites que o Faísca chora tristemente, ignorando a comida que lhe atiram os vizinhos apiedados, recusando responder ao chamado do seu nome, rejeitando outras janelas abertas na noite. Eu mesma o vi agora há pouco... Rondando o silêncio num choro triste, procurando a sua janela e o colo meigo, o Faísca brilhava na escuridão como uma centelha de dor imensa, chamando a sua velha, teimando entrar na casa que ainda não sabe que já não tem.

14 comentários:

Lídia Borges disse...


O vento que tempera as tuas crónicas chega-nos frio, uivando como se sentisse!

Um beijo

Lídia

Rogério G.V. Pereira disse...

O mais triste da história
nem é a tristeza do Faísca
é a solidão de uma velha
segando couves, uma janela que nunca se fecha
e a porta, certamente sempre aberta
mas por onde ninguém entrou

(belo texto)

ORPHEU disse...

Um texto brutal. Um texto maravilhosamente doce que me fez arrepiar.
Parabéns.

Anónimo disse...

Olha olha... A Anna voltou.
Em bom!

Beijinhos

Mar Arável disse...

Belo texto

Também há "donos" assim
Bj

Anónimo disse...

Caríssima Stora, este seu "vento salgado" é o tempero que procuro sempre que a visito...
Acredite que não estarei a exagerar se lhe disser que nos últimos tempos, alguns anos já, as palavras que escreve em nome próprio são, de todas as que leio e apesar de não ser um leitor compulsivo, ainda vou lendo umas coisas, aquelas que mais me afagam a alma.
Gosto da capacidade que tem de me fazer viajar para as memórias da minha infância, para os recantos da nossa cidade, para afetos timidamente guardados,...

Ó Stora, eu gosto mesmo muito de "a ler".

Receba o mais respeitoso, delicado e fraterno beijinho do "Carissimo".
;)

Anna disse...

Nem sempre o vento é brisa, Lídia.
Saudades, saudades, saudades.

E o meu beijo, claro :)

Anna disse...

O mais triste é a solidão... De gente e de bichos, a solidão rasga o coração como se fosse uma lâmina.

Abraço, Rogério.

Anna disse...

Obrigada pelas palavras e pela visita, ORPHEU.

Beijo.

Anna disse...

Grata pelo elogio, visitante anónimo :)

Anna disse...

Pois há, Eufrázio...

Abraço.

Anna disse...

Obrigada, Caríssimo...!
Pela sua presença, sempre. Pelas suas palavras, tantas vezes. Pela sua ternura e simpatia...!

Abraço :)

Suzete Brainer disse...

Olá Anna,

Uma crônica excelente e que evoca emoção, em mim as lágrimas correram
com a história em uma janela em qualquer lugar do mundo, a solidão
espelhada com o amor de um gato com uma senhora em que a sua visão
estava no toque da alma...
Simbologia que me chamaram atenção, o gato preto (adoro os gatos pretos...)
com uma senhora cega numa relação de amor a iluminar os dias de ambos.
A morte, a janela que se fecha para a senhora cega e para o Faísca.

Encantada com a arte da sua escrita!
Grata por este momento de leitura aqui!...

Anna disse...

Suzete,
Obrigada pelo carinho com que comentou o meu texto...! É bom saber que as palavras que escrevo tocam o coração de quem as lê.

É muito bem-vinda, volte sempre que queira :)