sábado, 25 de abril de 2015

A sétima onda


Na minha cidade, uma mulher matou-se. Durante toda a semana, por todo o lado se falava, se comentava, se tentava descobrir que razões teria para desistir da vida... Tinha 63 anos, e matou-se. No mercado, nas bancas da fruta e do peixe, as vendedeiras com voz consternada diziam só que ela andava mais triste, mais calada... Ninguém podia supor, uma mulher tão calma, tão simpática, tão serena, a casa sempre num brinquinho, comidinha a horas, roupinha do homem e da filha num primor que dava gosto...  Chocadas, as pessoas que a conheciam não encontram motivo algum para um ato tão desesperado. Sabe-se apenas que deixou um bilhete em cima da mesa da cozinha: Se eu me atrasar, recolham a roupa. 
Conta-se que no telemóvel da mulher que se matou, havia três mensagens, enviadas pouco antes da decisão tomada - para três amigas, todas com o mesmo texto: Posso ir aí a casa? Os relatórios deram as sms como entregues, mas ninguém lhe respondeu. Tenho pensado se o silêncio das amigas terá pesado na decisão da mulher que se sentou no cais, sozinha, à chuva e ao vento, a contar as ondas à espera da sétima, que a guardaria para sempre no ventre gelado e escuro do mar... Tenho pensado nisto, em quantas vezes olhamos os outros, os que amamos, e não reparamos que andam mais tristes, mais calados, talvez a controlar o ritmo das marés, quem sabe, também à espera da sétima onda... 
A casa da mulher que se matou está fechada, abandonada. Somente no estendal da varanda, a roupa que ninguém apanhou enrodilhou-se com o vento, encharcou-a a chuva, e lá continua cosida com o arame, fina como a lâmina de uma faca, branca como uma mordaça... - Tão abandonada, tão gelada, tão só, como se fosse o único testemunho da mulher que se matou, sem ninguém saber porquê.   

17 comentários:

Arnaldo Leles disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Majo disse...

~~
~ Uma narrativa elucidativa e edificante por nos fazer meditar...

~ Grata pela qualidade destes agradáveis momentos de leitura...

~ ~ ~ ~ ~ Abraço amigo. ~ ~ ~ ~ ~
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Lídia Borges disse...


Escolher a Vida é um ato de sensatez. Lutar até ao último fôlego para transformar a "onda" é um ato de coragem. É que depois da sétima, há outras, e não necessariamente a primeira, como se possa pensar, mas sim a oitava, a nona...

A Vida é bela!

Abraço meu!

Mar Arável disse...

O ciclo das marés

de cravo em riste

Anna disse...

Arnaldo Leles,

Deve ser infinito o desespero de alguém que acaba com a própria vida. Que desiste. E perante tão inacreditável dor, eu não me atrevo a fazer julgamentos ou juízos... Só Deus julga os homens.

Um abraço

Anna disse...

Majo,

Muito, muito obrigada pela presença e pelas palavras.

Abraço retribuído :)

Anna disse...

A vida é um presente sim, Lídia.

Abraço-te :)

Anna disse...

Que o cravo seja imortal, Eufrázio.

Abraço

deep disse...

É inevitável, quando alguém decide pôr termo à vida, pensarmos (aqueles que somos próximos) que poderíamos ter feito mais. Nunca saberemos. A culpa só pode abrir-nos os olhos para situações futuras.

Bj e boa semana. :)

Anónimo disse...

Um ato suicida é um ato de desespero quando a vida é um quarto vazio, quando há roupa que já não interessa ao corpo, quando a alma não encontra esquinas de luz.
Um suicida não tem hipótese de escolha entre a vida e a morte porque a sua clarividência se esvaiu.

Arnaldo Leles disse...

Olhando de cima o fundo do lago, parece perto, mas quão profundo e perfeito é o "não-julgar".

Anna disse...

É isso, Deep... Pensamos que olhamos, mas não vimos... E isso dói, toda a vida.

Beijo, boa semana :)

Anna disse...

Caro leitor Anónimo,

Posso roubar as suas palavras?

Grata, muito grata.

Anna disse...

Exatamente, Arnaldo Leles :)

Grata pela presença e pela partilha.

Anna disse...

Caro Arnaldo Leles,

Por descuido, removi um dos seus comentários, o primeiro. Não sei como o fiz, queira desculpar-me. Se quiser voltar a comentar, publicarei. Desculpe de novo este ato desastrado que não sei aconteceu.

Obrigada pela sua visita :)

Gustavo disse...

Mais uma vez me deixei perturbar pelas suas palavras a transbordar de sentimento para, de imediato, me apaziguar no rol de comentários dos quais destaco o belíssimo "quando a alma não encontra esquinas de luz" e pensei, de novo, na minha inabalável certeza de gostar de si. Não me alongarei em palavras, até por o sentir as preclude, deixo-lhe apenas mais um abraço.

Anna disse...

Gustavo, sempre tão generoso nos comentários... Obrigada!

Volte, volte sempre :)