quinta-feira, 23 de maio de 2013

Crónicas do Vento Salgado


Quase todos os dias, praticamente à mesma hora, passo pelo mesmo homem na estrada. Ele a pé, eu de carro, temos um percurso em comum e sei se estou atrasada ou adiantada conforme a rua em que nos cruzamos. Hoje ele atrasou-se... Apanhei-o antes de um cruzamento e percebi que ele tinha os passos mais lentos e que o peito empurrava com esforço o vento norte. Não sei porquê, reduzi a velocidade e pelo retrovisor fiquei a vê-lo afastar-se, devagar, o cabelo branco numa fúria revolta, as costas curvadas pelo peso da idade, as abas do casaco abertas como asas... Não sei quem é, não sei onde mora. E ele não sabe que nos une o relógio e a rotina, o itinerário riscado pela pressa nas ruas da mesma cidade. Aposto que ele nunca reparou em mim, que sou apenas mais um carro igual a todos os outros carros, rodando na estrada ao lado da qual ele caminha. Faz-me bem vê-lo. Cruzar-me com ele dá-me a sensação de que tudo está no seu lugar. Um dia vou parar ao lado dele e sorrir-lhe; talvez lhe pergunte o nome. E se ele fizer questão de saber, dir-lhe-ei apenas que lhe roubei a silhueta e que o prendi na pele do protagonista de uma história que ando a escrever. Tenho a certeza que não se ofenderá... E quase juro que acertei no seu nome.

3 comentários:

Lídia Borges disse...

O roubo de uma silhueta pode ser um ato de certa gravidade, mas se o propósito é dar-lhe corpo, dentro de uma história, tudo se compõe. Não fosse uma sombra que se ilumina, caso de uma enorme satisfação.

O nome deve ser mesmo esse! ;)

Um beijo

Anna disse...

:)

Bom fds Lídia, um abraço apertadinho :)

Anónimo disse...

acho que só dá para abraçar uma silhueta se ela tiver corpo. talvez não, talvez uma alma baste.