terça-feira, 19 de março de 2013

Pai...


Zanguei-me com Deus aos quatro anos. Foi a  primeira zanga feia, de muitas que a vida me traria... Durante meses adormecia a chorar depois de ter rezado até à exaustão, depois de ter pedido com o coração, como me ensinou a minha avó, para Deus trazer o meu pai de volta. Eu achava que Ele entenderia o quanto era injusta aquela morte, só podia ser um engano, Deus, que tudo podia, corrigiria esse erro terrível. Depois, pensei que era para me castigar por me ter portado tão mal, por ter assaltado a tigela da marmelada, por ter cortado o cabelo às bonecas, por ter roubado o batom da mamã, ou por ter desenhado nas paredes da sala com a caneta preta, que Deus me castigava assim tão violentamente. O pior de tudo eram as noites, quando me sentia escorregar para o sono e via o rosto dele, ouvia a sua voz e sentia o seu cheiro, tão nítido que só podia ser um engano, o pai estava vivo, ali ao meu lado, e por alguma desesperante razão que eu desconhecia, não conseguia vê-lo.
Zanguei-me com Deus mais tarde, na escola primária, quando no dia de hoje os meus amiguinhos faziam trabalhos para dar ao pai e eu era a única menina que ficava a fazer um desenho, com os olhos cheios de lágrimas, um nó na garganta e as mãos a tremer sem parar, sentada ao lado da professora; zanguei-me mais tarde, em todos os natais, nas páscoas, nas festas de aniversário, na primeira comunhão, nas noites infinitas em que o choro cansado da minha mãe atravessava as paredes do quarto e vinha enterrar-se no meu peito, certeiro como um punhal. E doía. Doía muito.
Depois cresci e reconciliei-me com Deus. Pedi-lhe perdão e agradeci-lhe por me ter deixado, estes anos todos, a presença do meu pai. E se ainda hoje o sinto tão perto de mim, é porque Deus, que também é pai, entendeu que eu merecia guardar ao menos as memórias. Durante toda a vida, o meu pai faltou-me todos os dias e no entanto eu sinto-o junto de mim, muitas vezes... Preciso de acreditar que a sua mão de anjo me ampara as quedas, que ele me escuta de todas as vezes que lhe falo, que me orienta os passos e me ilumina as saídas nas encruzilhadas da vida. E é para o colo dele que eu subo quando nenhuns outros braços me abraçam. Misteriosamente, inexplicavelmente, sei que é a mão dele que eu sinto neste momento pousada no meu ombro, é o rosto dele junto do meu, espreitando a sorrir este texto que agora escrevo.

8 comentários:

Lídia Borges disse...


Assim será, enquanto o quiseres.


Um abraço

Lídia

Anna disse...

Abraço-te, Lídia.

Anónimo disse...

Carisima Anna, penso ou pelo menos tenho esperança, que mesmo sem nos conhecermos me terá em boa conta. Acredito que apesar de palerma, retardado, alienado, ignorante,...me ache pelo menos bem intencionado. è com base nesse pressuposto que, respeitosamente, me atrevo adizesr que efetivamente gosto muito de si. No entanto hoje quem lhe manifesta este apreço e admiração é o menino que existe dentro de mim e que viveu toda a infancia angustiado com a possibilidade de perder um dos pais. Peço-lhe pois que entregue à "Menina Anna" que tão bem conhece um forte abraço de fraterna solideriedade.Se hoje não pode ver(com os olhos) o seu Pai feliz, que Deus lhe permita ver os seus filhotes (acreditando que os tenha) de plena saúde e de bem com a Mãe e a vida. Felicidades. Beijinhos do "Carissimo" Palerma ( sem links ou piscadelas)

Gustavo disse...

Um abraço são todas as palavras que lhe quero dizer em silêncio.
Gustavo.

Mar Arável disse...


Tudo pelo melhor

esteja onde estiver

Anna disse...

Caríssimo,
Tenho-o em boa conta, sim. Seguia religiosamente os seus blogues (os três, sim senhor!) e tive pena quando fechou as portas; tive pena quando esteve meses em silêncio; do mesmo modo, gosto de o ver chegar e perder algum do seu tempo a comentar os textos que por aqui vou escrevendo. Sei que é bem intencionado e nunca foi ofensivo ou inconveniente comigo, mesmo quando, como diz, "veste a pele de palerma" :)
Agradeço-lhe as palavras que me deixou neste texto em especial... É um assunto que sangra ainda, que sangrará sempre e é bom saber que há quem sinta como nós...
Retribuo as felicidades que me deseja, para si e para os seus e espero que ontem a sua gaivotinha o tenha estragado com mimos :)

Deixo-lhe um beijo e um :)

Anna disse...

Gustavo,

Abraço retribuído, cheio de palavras a rasgar todos os silêncios...

Anna disse...

Obrigada, Eufrázio :)
Que lhe chegue também o meu abraço, aí onde estiver.