sexta-feira, 29 de março de 2013

Crónicas do vento salgado


Estavam sentadas lado a lado, uma fazendo madeixas, a outra com a cabeça cheia de rolos fininhos nos cabelos curtos. Volumosas ambas, duplo queixo, mãos grossas com unhas cortadas rentes, a pele acusando maus tratos e esquecimento. Riam muito alto, felizes por estarem sentadas a descansar pelo menos duas horinhas, longe das bancas que possuem no mercado e onde encostam os ventres redondos enquanto apregoam o peixe fresco e vivinho. Trocaram receitas, comentaram as novelas da TVI, coscuvilharam a vida de uma vizinha que anda de namoro com um homem casado, falaram da vida dos filhos e desancaram nas noras como se estivessem ali sozinhas. As duas enchiam o salão de ruído com o seu gargalhar ouvindo-se por cima dos secadores. A dos rolos ficou pronta primeiro, levantou-se a custo atrasando até ao infinito o momento de regressar ao mercado, ficou de pé junto da outra, queria ver o louro final, talvez fazer igual da próxima vez... E riam, riam, riam... Até que a das madeixas olhou em volta e se envergonhou: Ai tchopa, até parece mal tarmos pr'aqui cum risadas e o Cristo morto... Fez-se silêncio por uns momentos que pareceram uma eternidade e depois a outra rematou: Abençoadinho seja! Olha mulher, é o único dia no ano co meu home não reclama os direitos dele e eu drumo como uma santa! Abençoada morte que proíbe a carne! A outra não se calou e passaram à discussão do desempenho dos maridos na cama, numa devassidão da intimidade que fazia corar a dona do salão. Depois, a que estava pronta pagou, despediu-se efusivamente da amiga e atirou para o ar: As sinhoras desculpem, sim? A gente gostamos munto de cumbersar, fomos feitas a falar! Boa Páscoa p'ra todas! E saiu, deixando atrás de si o silêncio e uma série de rostos sorrindo disfarçadamente. A outra ficou, ainda lá estava quando eu saí, os olhos tristemente cravados nas mãos pousadas na barriga, talvez pensando na vida sempre igual, só temperada com os encontros ocasionais com as amigas, ou quem sabe, no sexo que detesta e que faz por obrigação, na vizinha despudorada, na nora desmazelada, quem sabe se pensando no Cristo morto hoje e que há de ressuscitar no domingo, trazendo-lhe uma trabalheira enorme porque tinha a família toda para alimentar e enquanto estava ali à espera que o cabelo ficasse louro, o borrego estava por temperar.  

4 comentários:

Mar Arável disse...


... e o país ...

na afundação

Anónimo disse...

Póvoa Terra Querida. E haverá gente mais genuina? Este seu texto, foi hoje o sal que temperou o meu dia...Não sei se por me idntificar com o quadro descrito se pela simples evocação do duplo queixo...
;)

Anna disse...

Mesmo, Eufrázio...

:(

Anna disse...

Caríssimo, antes um duplo queixo do que um ventre redondo... Digo eu...
Uma Páscoa excelente para si e para toda a família :)
Beijo