segunda-feira, 11 de março de 2013

Crónicas do Vento Salgado

 
É cedo. No café ainda sonolento só estou eu, na mesma mesa de sempre, escrevendo no meio do silêncio das mesas vazias. Gosto de começar o dia assim, virada para dentro de mim, à procura do poema que hoje esvoaça num roçagar de asas inquieto porque me fogem velozes as palavras. Subitamente, a empregada deixa cair com estrondo a pilha de chávenas que carregava e elas estilhaçam-se em mil pedaços salpicando de branco o chão de tijoleira negra. O ruído foi inesperado e ensurdecedor. Ela levou as duas mãos à boca para amparar o grito abafado e leio-lhe a frustração, o susto, o cansaço. Os seus olhos procuram-me, pedindo desculpa pelo desastre e eu sorrio-lhe. Tem os cabelos escuros que usa escorridos sobre os ombros e as mãos grossas e maltratadas cheiram sempre a lixívia quando, sem que seja preciso pedir, vem pousar-me o café na mesa com os olhos sorridentes. Conhecemo-nos há muitos anos. Sempre que estamos só as duas, vem varrendo devagar na minha direção e encosta a anca redonda à borda da mesa, procurando o pretexto para a conversa, perguntando-me se estou a escrever outro livro, se quero um amanteigado quentinho ou uma meia de leite, numa preocupação genuína com o facto de eu nunca comer. Que tenho que me alimentar, diz muitas vezes. Que ando com olheiras e um ar cansado, que emagreci, que não devia escrever tanto porque fico com a cabeça cansada... Às vezes fala-me do filho, que é bom nos números mas se troca todo nas letras, e nascem-lhe umas ruguinhas de preocupação na testa a contrariar o sorriso sempre aberto, sempre pronto, sempre meigo. Nesses momentos, fala sem parar, conta que que não sabe o que vai ser dele, que não sabe como ajudá-lo a ser alguém na vida, alguém diferente dela, que tenha estudos suficientes para não precisar de varrer o chão, servir às mesas ou lavar louça num café. Cansado da vida no mar, o marido partiu há muitos anos para a Suiça e ela sente-se só apesar do skype, das sms cada vez mais raras, das rápidas visitas em agosto... Veja lá, professora, este ano ele esqueceu-se dos meus anos... É uma vida só de tristeza e de trabalhos... E com os olhos marejados de lágrimas, pegou na vassoura e começou a varrer devagar, arrastando os cacos num tilintar cristalino, pedindo desculpa de novo pela perturbação e pelo barulho. Rapidamente o chão recupera a negrura inicial e ela afasta-se para a cozinha com o apanhador cheio de cacos, não sei se de louça, se do seu coração, com os ombros descaídos resignados com o acidente, insatisfeita consigo própria e com o desastre do seus gestos.
 Retoma-se o silêncio e estou outra vez só. Em cima da minha folha há um caco branco pequenino que pretende decerto entrar no meu poema, fazer-se presente nesta manhã que agora começa. Dou-lhe então abrigo, deixo-o ficar no meio dos meus versos e pouso a caneta. Escorrego de novo para dentro de mim e aninho-me desconfortavelmente, algures, entre as rimas do meu poema definitivamente  estilhaçado. Como o coração da empregada, solidariamente estilhaçado.
 

15 comentários:

Anónimo disse...

Deve ser por "isto" que volto sempre a este seu mundo.

Quanto à sua amiga, diga-lhe que não se preocupe, o filho ainda há-de ser ministro adjunto.

Cumprimentos Salgados

Lídia Borges disse...


Já te disse como gosto deste escrever "Vida", sob o olhar atento e pleno de sensibilidade que é o teu.

Imagético, o texto! Ainda tento arrumar esse caco perdido sobre a página do poema e vem-me à ideia, o (teu) sobressalto na aula de Estudos Pessoanos quando, subitamente, a palavra "estilhaços" soou vítrea, saída de um pote partido ao fundo das escadas, num poema de Pessoa, lembras-te? :)

Um beijo



Anna disse...

Caríssimo,

Sejam quais forem os motivos, volte sempre que queira :)
E espero que no nosso país os filhos ainda possam ser o que eles quiserem... até ministros adjuntos!

Cumprimentos retribuídos, com pouco sal, porque a minha tensão arterial anda a bater no vermelho.

Anna disse...

Lembro-me, Lídia :) Que aula aquela...! Só sosseguei quando me sentei com o pc à frente e desatei a escrever como se não houvesse amanhã!
... Lembras-te????

Beijo e abraço muito apertadinho!

voo da alma disse...

Boa noite,
apenas uma pessoa sensível como a Anna fica atenta a todos esses detalhes.
São retalhos de uma vida simples, como tantas outras.
Retalhos tão simbólicos, a decorrer num tempo, no breve tempo de uma vida.
A essa empregada, não lhe deixe apenas o seu sorriso, fique em silêncio a ouvir a sua história e antes de partir deixe-lhe o apertado calor do seu abraço.
Não imagina quantos abraços já dei a desconhecidos.
Recordo-os e estou segura que eles jamais me esquecerão.
Siga atenta aos outros, atrás de uma simples mulher, pode estar um ser muito elevado e digno.

Anna disse...

Voo da alma,

Obrigada pelas suas palavras, com as quais concordo na íntegra! Às vezes temos mais necessidade de quem nos ampare a solidão do que de quem nos mate a fome, não é assim?

Volte sempre, deixo-lhe um abraço :)

voo da alma disse...

Sim! Anna, sim!

Mar Arável disse...

Por vezes necessáriamente só

mas nunca isolado

Anna disse...

Estamos em sintonia então, Voo da alma :)

Anna disse...

Costumo dizer que saber estar só é uma arte que se aprende, se refina, se aperfeiçoa... Se não soubermos estar a sós connosco, não nos podemos entregar aos outros... (digo eu...)

Um beijo, Eufrázio.

Isa Lisboa disse...

Comovente a história desse sorriso que nos trouxeste!

Beijo

Anna disse...

Comovente sim, Isa. A tocar o frio da tristeza... :(

Um beijo

Gustavo disse...

Aparte o fascínio algo melancólico do texto, fiquei suspenso no «perguntando-me se estou a escrever outro livro». Não me diga que a Anna já tornou pública esta sua paixão pela escrita? É que até já estou a salivar...

Anna disse...

Gustavo,
Sim, já existe um livro... Era um concurso e o primeiro prémio consistia na edição do trabalho. Foi meu :) Veja aqui, em julho de 2011 (dias 11 e 16):

http://wwwdeprofundis.blogspot.pt/2011_07_01_archive.html

Não tenho direitos de autor sobre a obra, os direitos pertencem à Fundação Luís Rainha que a publicou. No entanto, possuo ainda alguns exemplares e terei todo o prazer em oferecer-lhe o meu livro. Por favor envie-me uma mensagem privada para o endereço no rosto do blogue e deixe-me uma direção para eu poder fazê-lo chegar até si. É com muito carinho e prazer que lho ofereço e espero que não fique desiludido. O meu livro é seu, por favor aceite-o.

Deixo-lhe um beijo

Anna disse...

Desculpe Gustavo, estive a confirmar e corrijo agora: julho de 2011, dias 12 e 19.

:)