domingo, 19 de outubro de 2008

Vai passar...


Entrei em silêncio com receio de te acordar. A casa acusava já o frio do anoitecer e o céu triste reflectia-se na vidraça da sala. Lá fora, junto aos umbrais, as aves em revoadas barulhentas procuravam refúgio para a geada nocturna. O corredor respirava tranquilo e ouvia-se música, algures num outro andar. Abri a porta do quarto com mil cuidados mas afinal não dormias... Às voltas com os teus pensamentos, esperavas-me e sorriste feliz quando nos abraçamos. Quiseste ver-me bem, pediste-me para acender a luz, comentaste a minha magreza, a palidez, os olhos encovados... estiveste a chorar...? E o inquérito começou: se tenho comido bem, dormido direito, alguma preocupação ou tristeza escondida...? Chamaste-me minha pequenina e quiseste que eu me deitasse junto de ti. Naquele abraço quente que só as mães têm, brincaste com os fios do meu cabelo, elogiaste o meu perfume e ali ficámos... como quando eu era a tua pequenina e caía da bicicleta, esfolava os cotovelos porque tropeçava a saltar à corda ou esmurrava os joelhos a andar de patins... Nessas alturas, por entre as minhas lágrimas e a água oxigenada que com ternura me punhas nas feridas, dizias-me calma e muito baixinho:"Vai passar... Vais ver que vai passar...". E sempre passava.
Hoje, enquanto falavas, eu recuei muitos anos a essa infância onde tudo passava só porque tu dizias as palavras mágicas, com certeza e confiança, repondo tudo no seu lugar, espantando o medo, sarando feridas... Mas hoje as feridas são outras... Hoje, ambas sabemos que nem tudo passa, que há dores e feridas que não têm cura, que há lágrimas que não secam e mágoas que não se espantam. Apesar disso, nesse abraço sentido, quase juro ter ouvido a tua voz, sussurrando entre o bater dos corações um eco que gravei cá dentro: "Vai passar..."

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