terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Crónicas do Vento Salgado


Quando rasgaram a terra para construir a via rápida, a vivenda ficou a descoberto, com os dois andares erguidos orgulhosamente ao sol e as vidraças sempre imaculadas refulgindo, espelhando o azul... É uma moradia modesta com um quintalzinho delicioso que abriga, quase no fundo, um enorme estendal de roupa ladeado por duas oliveiras velhas, de tronco retorcido. Conheço os donos há muitos anos - desde criança - e a minha mãe contava que eles tinham vindo de Angola no mesmo avião que nós, que o homem me tinha pegado ao colo e conversado comigo durante todo o tempo que durou o meu ataque de pânico, que nunca me largou, mesmo quando lhe vomitei o peito da camisa, às golfadas. Na viagem de todos os terrores, a minha mãe descobriu ainda que em Luanda tínhamos vivido muito perto uns dos outros, apesar de nunca nos termos encontrado ou conhecido. A vida correu num sopro, ano após ano, e nunca me cruzei com eles na minha cidade... Somente a minha mãe os via, com intervalos de quase décadas, e de todas as vezes ele perguntava por mim, ria muito do meu terror e da camisa destruída pelo meu enjoo... Despedia-se sempre da mesma maneira, mandando beijinhos "à pequenita", desconsiderando as atualizações dos relatos da mamã: "a pequenita" formara-se, tinha casado, tivera um filho, outro filho... Hoje acredito que ele, por nunca mais me ter visto, aprisionara a imagem da criança frágil que nascera naquela viagem dantesca e nunca me deixara crescer... 
Passo diariamente na estrada que ladeia a casa onde eles moram. Aos sábados de manhã, o enorme estendal está carregado das camisas brancas a que sempre o obrigaram as exigências da profissão, imaculadamente brancas, orgulhosamente brancas, desfraldadas ao vento como bandeiras, parecendo aves gigantes de asas abertas... E eu sorrio e como um raio de luz entrando pela janela, vem, sem falhar, a lembrança da camisa que destruí, há tantos anos, quando era uma pequenita aterrorizada ao colo de um estranho que me cantava baixinho...
Soube que ele morreu hoje. Que morreu durante o sono, abraçado à mulher, na bonita moradia que construiu, grande de mais, vazia dos filhos que nunca pôde ter... E o frio que me gelou por dentro não é culpa deste inverno áspero, eu sei... É talvez porque me fará falta o bando branco de camisas voando no estendal enorme ao sábado de manhã... É talvez porque agora serei obrigada a crescer, agora não serei "pequenita" nos lábios de mais ninguém...         

12 comentários:

Anónimo disse...

Ó Stora, há tanto que eu podia dizer...fico-me por um "gosto muito de Si".

Respeitosos beijinhos
;)

Anna disse...

E já disse tanto... :)

Beijo, Caríssimo.

Lídia Borges disse...

Tens o dom de trazer até ao texto, suavemente, o que de mais sublime existe nas coisas "vulgares" do quotidiano, fazendo-as crescer, "aves gigantes de asas abertas" diante dos nossos olhos surpresos.

Um beijo

Lídia

Manuel Veiga disse...

há memórias assim - imaculadas!

beijo

Anna disse...

Lídia, tão bom ler coisas assim...
Obrigada!!!

Beijo

Anna disse...

Imaculadas e eternas...
Beijo, Herético.

ORPHEU disse...

Crónicas sublimes...

Anna disse...

Grata, Orpheu :)

Gustavo disse...

Anna, a magia da sua escrita traduz-se numa palavra: empatia. Expõe-nos de tal maneira aos seus sentimentos que eles passam naturalmente a ser nossos, como se nos transformássemos em Anna, por instantes.
De resto, faço minhas as palavras do caríssimo "Anónimo" a quem endereço os meus cumprimentos pela excelência dos seus comentários. O "gosto muito de Si" soa àquele abraço que é mais importantes que todas as palavras.

Anna disse...

Gustavo, sem palavras... Abraço retribuído.

Obrigada!

AC disse...

Anna,
Comecei a ler e, sem me dar conta, fiquei refém das palavras, dos sentimentos que lhes dão vida, da mão da pintora que, por mais que se esforce, jamais conseguirá segurar a tela do tempo...
Foi muito bom lê-la.

Anna disse...

Foi muito bom ouvir-lhe os passos...

Obrigada, AC.