sexta-feira, 14 de junho de 2013

Aurora

 
Chamei-lhe Aurora. Talvez porque é das palavras mais belas da língua portuguesa, a sugerir o brilho da luz da manhã. Também como uma manhã que rasga devagarinho a escuridão da noite, a Aurora teria sido um recomeço, o dia primeiro de uma nova vida cheia de esperança. E teria sido amada, muito amada. Penso nela muitas vezes, sonhei até um sonho doce onde ela me falava e sorria, com um ramo de flores na mãozinha pequenina. Senti-lhe o cheiro, o cheiro inconfundível que têm todas as crianças. E peguei-lhe ao colo, e ela era leve como uma ave, ou uma flor...
A Aurora nunca chegou a nascer. São coisas que aceitamos quando somos confrontados com elas, os médicos nada omitem e ajudam a tomar decisões, a fazer escolhas: uma vida por outra vida. E então, vestimos a pele dos deuses e decidimos, a frio e racionalmente. Mas ninguém nos conta, como a mãe da Aurora me contou, que um pedaço de nós morre com aquele coração que deixou de bater, que pelo resto dos nossos dias haveremos de imaginar a cor do cabelo, o tom da pele, o sorriso, o jeito de caminhar, o caráter que teria o filho que não pudémos deixar nascer. Um filho: a maior de todas as prendas que a vida nos dá - ou Deus, não sei bem...
Se a Aurora tivesse nascido, eu gostaria de ter sido a madrinha dela. Ter-lhe-ia ensinado as cores do arco-íris, a construir castelos na areia e a amar o mar... Ensinar-lhe-ia lengalengas e canções de embalar, trava-línguas e provérbios... Andaria com ela de patins e de bicicleta, para que sentisse o vento bater-lhe na cara e aprendesse o cheiro a sal nos cabelos... Ensiná-la-ia a plantar rosas e a maciez da terra molhada agarrada às mãos... Talvez lhe contasse a história do homem que vive para além das montanhas, na face oculta da lua...
Uma vida por outra vida... Assim teve que ser. Mas acredito que nada é em vão, que a Aurora é hoje um anjo branco que de vez em quando vem beijar a mãe e não parte sem antes, sereníssima, me abençoar os sonhos... 


10 comentários:

Anónimo disse...

Anna, também eu tenho uma Aurora assim na minha vida e é ela que me afasta da minha montanha. É ela que me ensina o caminho dos prados, o brilho das estrelas, o sal do mar e a placidez do lago.
Uma Aurora calma e de verdade.
Um texto sereno como a sua Aurora merece.
Gostei.
Eduardo Leblanc.

Anónimo disse...

so tu é que plantas rosas as outras pessoas todas plantam roseiras mesmo... dahhhh

Anónimo disse...

Desisto.
Prometi que jamais comentaria no seu blog para não correr o risco de com os meus comentários palermas criar-lhe embaraços. Li-a em silêncio. Resisti a muito custo à sua "Prova de fogo", penitenciei-me em silêncio ao ler o seu post sobre " A inutilidade do sono", mas agora foi demais...
Desisto.
Já não sei se lhe aprecio mais o "verbo" se as "ideias"... Ou se calhar a forma como usa as "palavras" em proveito dos "sentimentos"...
Estou condenado a desistir. Desisto de novo por me sentir incapaz de traduzir em palavras o que vai no peito...
Desisto e voltarei a remeter-me ao silêncio, mas hoje, foi mais forte que eu.

Queira aceitar os meus mais respeitosos cumprimentos que são a expressão da muita estima e admiração por tudo quanto semeia neste seu blog.

Parabéns! Muitos parabéns!!!

Anónimo disse...

por favor, que música é essa que toca?

Anna disse...

Obrigada pela partilha e pelas suas palavras tão belas, Eduardo. Gostei muito :)

Anna disse...

Caríssimo,

Ainda bem que levado pela impulsividade, desistiu. As suas palavras são generosas (muito generosas!)e senti-me acarinhada na partilha de um texto que é um presente para uma amiga, há muito prometido... Alguém disse, não me lembro quem, que todas as histórias de amor têm que ser contadas um dia... Ontem foi o dia :)
Muito obrigada!!!

Anna disse...

Anónimo das 3.11,

A música é de Yann Tiersen, "Comptine d'un autre été".

:)

Anónimo disse...

Passei para reler.
É uma pena que a vida não nos conceda essa pureza que emanou das suas palavras.
Onde está o lado singelo da vida?
Onde está?
Que esse anjo branco nos proteja para SEMPRE.
Eduardo Leblanc

Anna disse...

Sabe Eduardo, acredito que na caminhada da vida são os nossos anjos brancos que nos amparam as quedas, que nos limpam as lágrimas com um roçagar de asas suave, tão manso, que julgamos ter sido apenas brisa...
Desejo-lhe um bom fds :)

Anónimo disse...

Ana,nome belo e singelo...a Ana que escreve coisas lindas,intensas,vibrantes,coloridasde todas as cores,consoante o sentir da alma,limpa,serena,cálida,pura...
Aprecio muito o seu blog.Retrato-me naquilo que escreve e expõe de forma clara e decidida!
Venho visitá-la muitas vezes!...

Só hoje me senti com desejo de lhe dar os parabéns!...Se calhar tinha que ser hoje!...
Um abraço com muita admiração,minha.