quarta-feira, 6 de maio de 2015

As coisas que se dizem


Almoçavam na mesa ao lado da minha: fatos escuros de bom corte, gravatas clássicas, relógios caros, telemóveis topo de gama. Executivos, arriscaria dizer. Falavam baixinho e era talvez essa a nota dissonante naquele restaurante barulhento e apinhado de jovens estudantes, que cheira a gordura e despacha o baratíssimo prato do dia à velocidade da luz. Não, não foi o aspeto deles que me atraiu mas a forma como conversavam... E eu que adoro roubar conversas - e almas, às vezes - tentei escutar o que diziam por entre o tinir dos talheres, o ruído da televisão, o gargalhar contínuo e os berros dos estudantes. Não era de negócios que falavam e de vez em quando eu apanhava uma palavra, pedaços de frases, retalhos da conversa que me fazia companhia... - Mas ela disse-te mesmo isso??!! - e o olhar do outro pousado na mesa coberta com uma toalha de papel, onde as mãos cegas e à toa rabiscavam misteriosos desenhos infantis... A desolação nos olhos do desenhador, o consolo nas palavras do primeiro - Ó pá, deixa lá, não fiques assim, isso são coisas que se dizem... Veio o café, veio o silêncio antes de o homem que desenhava responder devagar: - Não são as coisas que se dizem, é a maneira como se dizem as coisas, entendes?
Dei comigo a dar-lhe razão. A pensar que as palavras podem ser balas e despedaçar peitos, esbofetear violentamente, se as atiramos furiosas ao rosto de quem nos ouve; pensei que as palavras, muitas vezes, são murros que abatem os que nos escutam, são pedras que ferem e rasgam e fazem feridas que cicatriz nenhuma fechará... Pensei que as palavras, quando embrulhadas em rancor ou desprezo, cuspidas com ódio, são um poderoso armamento na mais injusta das guerras: a guerra do verbo.
Levantei-me para sair e o homem que desenhava rabiscos na toalha olhou-me por ligeiríssimos segundos que o seu relógio caro teria registado, um instante apenas, que espero fosse suficiente para ele ter conseguido ler nos meus olhos a única coisa que me apetecia dizer-lhe: - Sim, eu entendo.

12 comentários:

Vinicius Geyer disse...

Oi.Muito bom o seu conto!Parabéns.Apesar de ser escrito, de tão bem escrito,sendo muito visual e imaginativo.Parabéns.Abraço.

Anónimo disse...

O mundo rodará sempre na mesma órbita de palavras aguçadas. Lamentavelmente!

Majo disse...

~~
~~~~ Concordo, inteiramente, consigo.~~~~

~~ Um texto muito interessante e deliciosamente urdido.

~~~~~~ Beijinhos. ~~~~~~
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Mar Arável disse...

No restaurante do sr Abílio
tudo é mais simples
e complexo

Manuel Veiga disse...

há momentos assim - um cruzar de olhares que dura uma eternidade...

(gosto muito do registo da tua escrita - que sabe "jogar" na surpresa e cultiva um intimismo, diria que "fingido"...)

beijo

ORPHEU disse...

Eu também entendo.
Texto brutal, como sempre.

Anna disse...

Obrigada, Vinicius :)

Anna disse...

Lamentavelmente mesmo, caro leitor Anónimo.

Anna disse...

Grata, Majo :)

Beijinhos

Anna disse...

Abraço, Eufrázio.

Anna disse...

Obrigada, Herético! Palavras que me honram tanto...!

Anna disse...

Generoso, ORPHEU :)
Como sempre.