sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

O direito à futilidade


A chuva torrencial, batida pelo vento forte, foi apenas o pretexto para me abrigar - eu sei. Mas apeteceu-me entrar naquela loja tão linda, perfumada - um subtil odor a jasmim, caramelo  e canela - e elegantemente colorida, com as roupas penduradas em expositores modernos, alinhadas por cores e tons. Nunca lá tinha entrado. Os números nos preços da montra avisavam-me que tudo lá dentro excederia o que eu posso pagar por uma peça de roupa. Entrei, mesmo assim.
Na loja vazia de gente, uma funcionária passava as mãos lentas pelas pregas de uma saia, os olhos entediados derramando uma lonjura qualquer, muito para além das vidraças embaciadas por este fevereiro triste. Cumprimentei-a e recebi um sorriso generoso, aberto como uma janela virada ao sol, um sorriso quente e sincero. Precisava daquele sorriso para vencer a timidez - como se sentisse, algures cá dentro, que estava a transgredir as regras da logicidade, da economia doméstica, ao atrever-me no espaço de um criador onde não gastaria nada, para além de tempo. Enquanto pisava a vastidão fofa das carpetes verde-água, dirigi-me ao expositor dos vestidos, enorme, emoldurando o fundo da loja num lindíssimo friso colorido, uma barra de primavera antecipada que os meus olhos agradeceram. Eram todos maravilhosos... Atrás de mim, a voz da funcionária soou suave, mas sobressaltou-me, mesmo assim - Longo, médio ou curto? -  e o sorriso sempre lá, a fazer-me sentir mal por estar a empatá-la, a enganá-la, uma vez que sairia sem comprar... Hesitante, respondi que precisava de um longo, para um evento, e que queria um vestido que me fizesse sentir confortável... Sóbrio - acrescentei. A rapariga sorriu. Era feiinha. Mas - irrepreensivelmente vestida e maquilhada, o cabelo brilhante com madeixas discretas caindo-lhe liso sobre os ombros - continuava a oferecer-me sorrisos abertos e genuínos, e ia-me explicando que ali, todas as peças eram únicas, com uma mistura de classe e atrevimento que destacava a feminilidade das mulheres... Todas as mulheres se sentem belas com os nossos vestidos. - Rematou.  Faltava decidir a cor e quando ela me perguntou, a minha voz saiu segura e irredutível - Azul. Deslocamo-nos ambas para o fundo do expositor, para a palete dos azuis - todos os tons de azul - e comecei a afastar os cabides com atenção. E então vi-o! Era aquele, eu sabia. Com uma única alça, tinha o cós cravejado de pedrarias discretamente brilhantes, que debruavam também o decote, e uma sobreposição de saias fluídas que flutuariam em redor de mim a lembrar a dança das algas em água salgada... Era aquele. A empregada não precisou de muito tempo para me convencer e dali a pouco estava a acompanhar-me a um enorme provador espelhado, alcatifado, aquecido, onde Vivaldi se fazia ouvir no tom certo. Despi-me e peguei com cuidado no vestido, deixei-o escorregar lentamente pelo meu corpo, assentar graciosamente na cintura, descer com naturalidade sobre as ancas... Apertei o fecho invisível e só então levantei os olhos a medo para o jogo de espelhos. Em frente de mim, uma mulher elegante, num vestido maravilhoso, devolvia-me o olhar brilhante, o sorriso como um triunfo. Rodei sobre os meus pés em intermináveis piruetas, arrisquei uns passos de dança, e o vestido dançou comigo, como se tivesse sido desenhado, cortado, costurado no meu corpo... Era para mim, aquele vestido. Do lado de lá da porta, a empregada disse delicadamente - Fazemos arranjos, se for necessário... Deixei-a entrar e estudei-lhe as reações, acreditei nas mãos que levou à boca para atenuar a  sinceridade da exclamação impulsiva, nos olhos que não mentiam... Perfeito!  E depois, coloquei-me em bicos de pés e subi dez centímetros, imaginando-me calçada com saltos vertiginosos... Perfeito! - repetiu.
Pouco depois, enquanto com gestos eficentes e cuidados, a empregada ia embrulhando em papel de seda o meu vestido, contou que nunca tinha tido um caso assim, logo à primeira, sem tentar outras cores, outros modelos, outro género... Um privilégio, uma coisa destas! Era amorosa... Não lhe disse, claro, que aquele vestido me esperava. Que já era meu sem eu o saber e que por isso tinha que o levar, sem sentimentos de culpa quando vi o preço na etiqueta... Nem ela soube que já na rua, à chuva, eu caminhava feliz, com o meu maravilhoso vestido apertado contra o peito... O meu vestido cor de céu. Cor de noite. Cor de mar. 

7 comentários:

Anónimo disse...

Não vivo sem o mar!
Gostei do texto.
Vai casar?
Eduardo.

Anónimo disse...

Pena a rapariga ser "feinha"...

Mar Arável disse...

Para lá do azul
mesmo assim
tudo é mar

Bjs

Anna disse...

:) Não, Eduardo. Já sou casada :)

Bom fds!

Anna disse...

Pena... Porquê???
Era feiinha, sim. Mas bela, muito bela.

Anna disse...

Obrigada Eufrázio :)

Bom fds!

Anónimo disse...

Qualquer "farrapinho" lhe fica bem...