Devias estar aqui rente aos meus lábiospara dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um
- Eu vi a terra limpa no teu rosto
Só no teu rosto e nunca em mais nenhum.
Eugénio de Andrade
Que dias há que na alma me tem posto/ um não sei quê, que nasce não sei onde,/ vem não sei como, e dói não sei porquê. - Luiz Vaz de Camões

Abro a porta e saio só para sentir o cheiro da noite. Espero em silêncio que a pele se habitue ao frio e os olhos à escuridão, e inconscientemente inclino a cabeça para ouvir a coruja que habita as ruínas do velho aqueduto. Nada se move, como se a vida, suspensa, esperasse também que a chama do cigarro se consuma no último trago para retomar serena o seu respirar... Nas árvores negras as aves dormem e bichos rastejam velozes na mata ao abandono... Sento-me, como sempre, no último degrau e espero. Qualquer coisa. Qualquer som. Qualquer luz ou cheiro. Espero. Espero que isto que sinto, tome a consistência das sombras.
Despedi-me deles que sorriam, os pensamentos já na praia, nas festas, nos acampamentos e na piscina, no café e no cinema, nos festivais, na alegria sublime de se ter dezasseis anos e se ser dono da vida e do mundo. Despedi-me deles com saudade, tantas horas juntos, tanta coisa partilhada que rasga os livros, as matérias, atravessa as salas de aula e se escreve com ternura no coração... Despedi-me deles com amor e fiquei a vê-los partir em bandos de risadas, braçadas de almas plenas de esperança que a vida não devia trair... Despedi-me deles com a sensação de que são um pouco meus, de que levam um bocadinho de mim, como só é possível quando se partilha o avesso de nós, quando se mostra sem pudor nem medo o sombrio lado lunar. Conheço-os e eles conhecem-me... Provaram conhecer-me quando a aluna delegada me entregou tão feliz o presente de todos, um poema feito pela turma, cada verso escrito por um punho diferente... Leram-no todos, um verso cada um, policiando as minhas emoções que caíam em derrocada nos olhos brilhantes. Explodiram em palmas, Ó Stora, não somos poetas?, abraçaram-me, e depois partiram...
O meu sonho é como um cão vadio, desses que se nos colam à porta e ali ficam, de olhos meigos e submissos, implorando guarida. Já o enxotei, já o apedrejei, mas ele volta. Quando me apanha distraída, sempre que eu baixo a guarda, ele regressa, entra por um vazio qualquer do olhar e enrosca-se num novelo triste à porta do coração. Deixei de o alimentar, há muito tempo que não o abrigo no calor da memória, mas de nada adianta. Ele volta. Volta sempre.
Quando a vida me dói mais, calço as sapatilhas e levo o meu corpo à beira-mar. Somos só nós, eu e o meu corpo gelado de vento, cansado do tempo, o meu corpo caminhando, com os olhos cheios de azul e a boca a saber a sal. Com o meu corpo correndo, fujo de mim, das vozes e das sombras, das faltas e das sobras, das dores e das horas. Quando a vida me dói mais, só posso fugir pelo meu corpo que se esgota até à exaustão, para me permitir regressar a mim. E lembro-me sempre do Apolinnaire, que fala das sete portas do corpo de uma mulher. Talvez ele tivesse razão... Mas o meu corpo não tem portas, como o mar. Tão infinito quanto ele.