Nunca gostei de dormir. É uma luta antiga, que me leva a evocar as tardes quentes em Trás-os-Montes, o casarão da avó abraçado à imponente buganvília cor de sangue que ladeava o arco da entrada, os caminhos de terra cheios de bichos, as borboletas que quase conseguia agarrar, os figos tombados no chão apodrecendo num cheiro doce, o grande tanque onde a água gelada transbordava e onde eu lavava - cantando esganiçadamente - a roupa das bonecas... Tanta coisa para fazer, tão curtas as férias, e a minha mãe obrigava-me a dormir a sesta no quarto escurecido... E eu nunca dormia. Ficava de olhos abertos a ouvir os besouros e as cigarras, as vozes abafadas dos adultos na cozinha de pedra, o estalar das madeiras velhas, os cavalos tão perto de mim...
Nunca gostei de dormir. A minha adolescência foi um braço de ferro com a autoridade materna porque eu lia pela noite dentro, compulsivamente, até me arderem os olhos, até os braços e as mãos dormentes já não conseguirem segurar o livro... Sempre me pareceu uma perda de tempo este coma induzido a que o nosso próprio corpo nos vota, este desligar de fios, este apagão mental que nos fragiliza e nos expõe como uma nudez, este baixar das barreiras do pensamento que permite o assalto covarde dos sonhos... À queima-roupa, eles surgem dentro dos olhos fechados como imagens de um filme que não sabíamos ter vivido, recuperam fragmentos da memória que julgávamos perdidos, fazem-se presente, outra vez. É injusto. É injusto acordar quando os sonhos são bons. É injusto ter adormecido quando acordamos com os olhos molhados de lágrimas e um grito atravessado na garganta.
Não, nunca gostei de dormir. A noite não devia servir para isso, tão bela é a noite, tão fecunda, tão misteriosa é a noite! Gosto de conduzir de noite, de viajar de noite, do cheiro e do sussurro da noite... À noite vejo melhor, penso melhor, escrevo melhor, sinto melhor... Que inutilidade, ter de dormir...! E às vezes penso que deveríamos poder negociar com o corpo, reduzir as horas de imobilidade, é escandaloso e chocante o tempo perdido... Faço contas, outra vez: se eu viver até aos noventa anos, terei passado trinta anos a dormir, apagada, inconsciente, morta para a eterna novidade do mundo, como diz o Caeiro. Trinta anos! Tanto livro, tanto filme, tanto texto, tanta viagem se faz em trinta anos... Para uma vida que só nos é permitido viver uma vez, breve como o riscar de um fósforo, sinto o sono como uma perfeita e completa inutilidade, um desperdício de tempo. Por isso, já que amanhã é feriado, esta noite não vou dormir, vou ficar as escrever as palavras que andam cá dentro, como borboletas... Também elas não dormem, as borboletas. Também tão breve, tão veloz, a vida que vivem.
5 comentários:
Eu gosto de dormir. É o meu apagão de protesto contra a insónia das palavras!
Lindo, o teu texto! Como habitualmente!
Quase toda a gente gosta de dormir... Sinto-me um pouco esquisita nesta aversão ao sono :)
Beijo, Lídia :)
Não penses no tempo que perdes quando dormes, inútil para TI, pensa sim, no tempo que passas acordada e é desperdiçado ou mal aproveitado. JH
Não te preocupes, JH.
Eu não desperdiço tempo... :)
Beijo
Um texto muito bonito, Anna. Como me revejo em quase tudo o que escreveu!
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