sábado, 25 de agosto de 2012

Ponto final

 
Agosto vai tombando mansamente numa doçura de poentes cor de sangue... Os dias baloiçam devagar, diluindo nas horas que escorrem, indiferentes à pressa, todas as angústias que o coração carregou o ano inteiro...
Em Agosto não há tempo nem urgências... e é o mês de todas as resoluções. Agosto espreguiça-se em dias claros e em noites mornas e cheias de brilho, em madrugadas tranquilas embaladas no canto das cigarras e dos grilos que parecem nunca dormir... É o mês das marés vivas, do mar irado que sobe no areal, do nevoeiro matinal e das chuvas mornas, da ronca a acordar a cidade e a fazer-se ouvir por cima da dolência das badaladas do sino da igreja...
Há uma paz única em Agosto, no pulso sem relógio, no despertar lento e preguiçoso, na evasão das leituras adiadas, nos passeios à beira-mar quando a cidade escurece lentamente, nas conversas arrastadas em esplanadas rasgadas de sol e de risos. Em Agosto todos os dias são meus, todos os instantes me pertencem. É o mês da solidão, tão boa, que desenha escadas em caracol até ao poço mais fundo no fundo de mim. É o mês das memórias, dos planos e das decisões tomadas com um sorriso e com o coração pacificado.
É possível parar em Agosto. É possível comprar um gelado de tangerina e menta e saboreá-lo junto ao mar, em passos lentos, talvez ouvindo cá dentro uma música eterna, um texto que me comove ou um poema inesquecível... É possível fotografar o mar, aprisionar na câmara o tombar das ondas, o enrolar e desenrolar do azul, a explosão fria da espuma... Em Agosto escrevem-se poemas e colocam-se pontos finais, como uma casa onde fomos felizes e que finalmente arrumamos... E quando suavemente batemos a porta atrás de nós, sabemos que é possível recomeçar em paz. Sabemos, cá dentro, que por mais difícil que tenha sido, conseguimos colocar o ponto final.
 
(Eu regresso em breve, até já...)

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

E é querer tanto...

 
queria de ti um país de bondade e de bruma
queria de ti o mar de uma rosa de espuma


Mário Cesariny, in Poemas

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Segredo

 

Nem o Tempo tem tempo
para sondar as trevas

deste rio correndo
entre a pele e a pele

Nem o Tempo tem tempo
nem as trevas dão tréguas

Não descubro o segredo
que o teu corpo segrega

David Mourão-Ferreira, "Segredo" in Música de Cama

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Palavras roubadas


Que grande livro se poderia escrever com o que se sabe. E que outro, ainda maior, se poderia escrever com o que não se sabe.

Júlio Verne

domingo, 19 de agosto de 2012

Da amizade


São os silêncios que fazem verdadeiras conversas entre amigos. O que conta não é o que é dito, mas o que nunca é necessário dizer.

Autor desconhecido

(Obrigada, Lídia! Tenho medo, sabes? Não largues a minha mão...)

sábado, 18 de agosto de 2012

Vou por onde não há caminhos


Só amei o que tinha fim e tudo o que amei se eternizou. Vou por onde não há caminhos - só no fogo deixo pegada.

Mia Couto

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Da espera


É provável que coisas improváveis aconteçam.

Aristóteles

Palavras de Sol


Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in Poesia

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Não me deixes



Não me deixes
antes que o lado Sul do vento
me venha buscar,
fica e deixa-me contar
uma história
sobre as estradas
onde se escolhe o caminho,
de mãos agarradas
ao cajado,
livres,
de pés andarilhos
compassados do destino
que nasce de dentro
da força de cada jornada.
Não me deixes
enquanto fores amarra
deste cais
onde o meu barco
repousa, inquieto.
Não me deixes
que preciso dos teus beijos
e a minha boca
fala de dentro de ti
com o sabor das palavras
que te amam

Jorge Bicho, "Não me deixes" in Por dentro Das Palavras

Roubado ao tempo



Ninguém, em verdade, viaja para uma ilha. As ilhas existem dentro de nós, como um território sonhado, como um pedaço do nosso passado que se soltou do tempo...
 
Mia Couto, in Pensageiro Frequente
 

sábado, 11 de agosto de 2012

Num sossego azul


Não lhe pedi que viesse. Pedi-lhe só que às dez da noite, e pela última vez, a sua lembrança me esperasse ao caminho. Cheguei cedo e sentei-me. Quando soasse a hora, eu queria senti-la ao pé de mim, não bem no seu corpo, não bem nas suas palavras, mas apenas naquele sossego azul que tornava o mundo perfeito. No momento combinado, eu havia de respirar o sonho de quando não sabia que era sonho.
Tudo isto está errado. Vejo-lhe daqui o erro fechado e exacto como um cubo de pedra. Mas sei que lá dentro não há erros de fora. Por isso, espero. Não lhe pedira que viesse. Também não tinha pedido a Lua, e a Lua veio, precisamente, quando pensei que era bom haver Lua. Não fiquei pois surpreendido, quando, à hora marcada, no caminho que vai à fonte, Marta apareceu tão leve como a sua lembrança. Percebi então que as mimosas rescendiam através da noite sem medos. E que havia em roda pinheiros e veios de água e que eu estava ali no meio de tudo.

Vergílio Ferreira, "Adeus" in Apenas Homens e Outros Contos 

Presente indicativo, artigos às escuras


Tento empurrar-te de cima do poema
para não o estragar na emoção de ti:
olhos semi-cerrados, em precauções de tempo
a sonhá-lo de longe, todo livre sem ti.

Dele ausento os teus olhos, sorriso, boca, olhar:
tudo coisas de ti, mas coisas de partir...
E o meu alarme nasce: e se morreste aí,
no meio de chão sem texto que é ausente de ti?

E se já não respiras? Se eu não te vejo mais
por te querer empurrar, lírica de emoção?
E o meu pânico cresce: se tu não estiveres lá?
E se tu não estiveres onde o poema está?

Faço eroticamente respiração contigo:
primeiro um advérbio, depois um adjectivo,
depois um verso todo em emoção e juras.
E termino contigo em cima do poema,
presente indicativo, artigos às escuras.
 
Ana Luísa Amaral, in Coisas de Partir
 

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Jorge Amado: 10 Agosto 1912 / 06 Agosto 2001


A noite é para o amor... 
Vem amar nas águas, que a lua brilha...
Como é doce morrer no mar...
 
Jorge Amado, in Mar Morto

 

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Palavras de fogo


Escalar-te lábio a lábio,
percorrer-te: eis a cintura
o lume breve entre as nádegas
e o ventre, o peito, o dorso
descer aos flancos, enterrar

os olhos na pedra fresca
dos teus olhos,
entregar-me poro a poro
ao furor da tua boca,
esquecer a mão errante
na festa ou na fresta

aberta à doce penetração
das águas duras,
respirar como quem tropeça
no escuro, gritar
às portas da alegria,
da solidão.

Porque é terrível
subir assim às hastes da loucura,
do fogo descer à neve

abandonar-me agora
nas ervas ao orvalho -
a glande leve.

Eugénio de Andrade, "Nas ervas" in Chuva sobre o Rosto 

Vox populi, vox Dei


Os homens são como os vinhos: a idade azeda os maus e apura os bons.

Provérbio latino

Nudez


Cintilação de luas
assim que te desnudas
às escuras

David Mourão-Ferreira, in Música de Cama

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Da Vida


Disse a Flor para o Principezinho:
- É preciso que eu suporte duas ou três larvas se quiser conhecer as borboletas.

Antoine de Saint-Exupéry, Le Petit Prince

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Palavras roubadas



A cada dia que vivo, mais me convenço de que o desperdício da vida está no amor que não damos, nas forças que não usamos, na prudência egoísta que nada arrisca e que, esquivando-nos do sofrimento, perdemos também a felicidade.

Carlos Drummond de Andrade

Nas tuas mãos


Nas tuas mãos começava
O mundo
E nada
Nem o dia
Podia ser mais perfeito...

Ana Paula Tavares, in Manual Para Amantes Desesperados

Não hei-de pesar-te nunca na memória



Não adormeças: o vento ainda assobia no meu quarto
e a luz é fraca e treme e eu tenho medo
das sombras que desfilam pelas paredes como fantasmas
da casa e de tudo aquilo com que sonhes.

Não adormeças já. Diz-me outra vez do rio que palpitava
no coração da aldeia onde nasceste, da roupa que vinha
a cheirar a sonho e a musgo e ao trevo que nunca foi
de quatro folhas; e das ervas húmidas e chãs
com que em casa se cozinham perfumes que ainda hoje
te mordem os gestos e as palavras.

O meu corpo gela à míngua dos teus dedos, o sol vai
demorar-se a regressar. Há tempo para uma história
que eu não saiba e eu juro que, se não adormeceres,
serei tão leve que não hei-de pesar-te nunca na memória,
como na minha pesará para sempre a pedra do teu sono
se agora apenas me olhares de longe e adormeceres.


Maria do Rosário Pedreira, "Não Adormeças" in A Casa E O Cheiro Dos Livros

domingo, 5 de agosto de 2012

Norma Jean: 1Junho1926 / 5 Agosto1962


Nao me alimento de "quases", nao me contento com a metade! Nunca serei sua meio-amiga, ou seu meio-amor.. é tudo ou nada.

Marilyn Monroe

O Amor, coisa cintilante


Pois de amor andamos todos precisados, em dose tal que nos alegre, nos reumanize, nos corrija, nos dê paciência e esperança, força, capacidade de entender, perdoar, ir para a frente.
Amor que seja navio, casa, coisa cintilante, que nos vacine contra o feio, o errado, o triste, o mau, o absurdo e o mais que estamos vivendo ou presenciando.

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 4 de agosto de 2012

Da Felicidade


Pela flor pelo vento pelo fogo
Pela estrela da noite tão límpida e serena
Pelo nácar do tempo pelo cipreste agudo
Pelo amor sem ironia por tudo
Que atentamente esperamos
Reconheci tua presença incerta
Tua presença fantástica e liberta. 
 
Sophia de Mello Breyner Andresen, "Felicidade" in Obra Poética
 

Bastava não ter medo do escuro


Eu dizia-lhe que podíamos ver o resto do mundo. Daqui de onde estávamos, sem ninguém nos ver. Bastava não ter medo do escuro. Bastava esperar que fosse noite.

Clara Pinto Correia, in No Pó Da Bagagem

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Palavras de seda


A vestir-te
o corpo
nu

ou a sede
que é minha

ou a seda
que és tu

David Mourão-Ferreira, in Música de Cama

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

No fundo de nós




Há dentro de nós um poço. No fundo dele é que estamos, porque está o que é mais nós...

Vergílio Ferreira

Do Amor



Começa o tempo onde a mulher começa,
é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz.
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com uma imagem.
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.

Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde a beleza que transportas como um peso árduo
se quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado e vivo.
- Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua.
 
Herberto Helder, in O Amor em Visita (excerto 4) 

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

No Coração... Talvez...


No coração, talvez, ou diga antes:
Uma ferida rasgada de navalha,
Por onde vai a vida, tão mal gasta.
Na total consciência nos retalha.
O desejar, o querer, o não bastar,
Enganada procura da razão
Que o acaso de sermos justifique,
Eis o que dói, talvez no coração.

José Saramago, in "Os Poemas Possíveis"