Nem percebia que caminhava na direção errada, subindo contra a multidão que descia, o casaco desapertado no frio do inverno que não sentia na pele nua. Um passo a seguir ao outro, sem firmeza, numa lentidão triste de quem perdeu o rumo certo ou não tem para onde ir, os braços pendendo tristemente, a mão direita segurando com firmeza a trela de um cão. O homem chorava. As lágrimas, duas a duas, aninhavam-se no rosto sulcado de rugas profundas, morriam apertadas nos lábios cheios de cortes que sangravam. A menina não viu um cão? Não viu o meu Rex? Não, eu não vira, só a dor dilacerante daquele homem era visível e doía... Meteu a mão no bolso e mostrou-me os biscoitos dietéticos e o medicamento, contou-me da diabetes e da dependência de insulina, do tanto que gastava para lhe comprar os remédios, da casa desesperantemente fria e silenciosa há dois dias, das horas vazias de sono e de fome, do cansaço da busca imparável, de como desaparecera num minuto pequenino enquanto ele dormitava num banco de jardim... A menina sabe, ele só me tem a mim! Sem mim, ele morre...! Eu acreditei. Acreditei porque há amores assim, amores eternos e infinitos, alma de cão e alma de gente, almas apenas, afinal. Acreditei que algures na cidade, um cão sem rumo perguntava também aos passantes pelo dono perdido, talvez sentindo o desespero do coração que se rasga e se parte, sim, coração de bicho também dói, também sangra, e tenho a certeza que o Rex explicaria, se pudesse, que tinha de encontrar o dono, um velho que só o tem a ele, que precisa tanto dele, e que sem ele, com toda a certeza, antes do Natal, morre de tristeza, de desespero e de solidão.
10 comentários:
Hoje, que andei às voltas com um texto sobre o dezembro das ruas, chego aqui e encontro tudo o que procurava sem ter de escrever uma única palavra.
Comoveu-me tanto!...
Obrigada.
Um beijo
As viagens mais belas, aquelas que realmente perduram, são as que fazemos por dentro da alma. Da nossa e de todas as outras com quem nos cruzamos. Nelas, nas almas, encontramos afectos, uma rede que se constrói em momentos de vida e silêncio e nos ampara, como um abraço, de toda a solidão.
Este texto, escrito com o talento e a sensibilidade de quem não receia mergulhar no coração do que quer que seja, é uma tocante e comovente viagem para dentro do que está à nossa volta e onde, longe do brilho das luzinhas, das mesas fartas e do sentir palpável das ofertas, reside o verdadeiro Natal.
Obrigada, Paula!
Um beijinho grande
Eu é que agradeço, Lídia... É tão bom sentir que as palavras chegam ao coração de quem lê... :)
Beijo, saudades imensas!
Maria João,
O Natal, por inúmeras razões, é uma época em que ando mais sensível... Olhar os outros, em vez de espreitar para dentro de mim, oferece-me emoções às vezes difíceis de gerir... Mas também isso deve ser matéria de escrita, merece ser matéria de escrita!
Beijo, saudades!
Triste, reflexivo, sensível...
Sim, há outros Natais e há outros "amores"...
Há sim Rosa, tantos Natais e tantos amores...
Obrigada pela visita e pelas palavras :)
Cão como nós...
Exatamente, cão como nós...
A perda de um cão pode ser bastante dolorosa.
Eu que o diga...
Anna, desejo-te um Feliz Natal e um ano de 2012 cheio de coisas boas para ti e para a tua família.
Beijos.
Nilson, muito obrigada! Desejo-te o mesmo, do fundo do coração.
Beijo
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