domingo, 25 de maio de 2014

Mar. Amor.

 
Nasci a meio de julho de um verão escaldante. A minha mãe conta que, fragilizada pela gravidez de risco, pelo parto difícil, só pedia a Deus que eu sobrevivesse... E que dormisse. Mas eu não dormia. Chorava de dia e de noite e comia menos que um passarinho... Não sabiam o que me fazer, o médico estranhava aquela criatura que parecia reclamar por estar viva e não fazia diagnóstico algum. As vizinhas davam palpites: é do calor, coitadinho do anjinho...; o leite da mãe não presta; tem algum bruxedo...; melhor batizá-la já, que não é deste mundo... Os primeiros dias da minha vida foram passados assim, de colo em colo para que os braços se revezassem e se pudesse dormitar e recuperar forças.
A meio de agosto, num dia de calor infernal e numa vida distante sem ar condicionado ou ventoínhas, eu gritava tanto que ao fim da tarde a minha mãe e a minha avó agarraram em mim e levaram-me para a rua. Andaram sem destino e acabaram junto ao mar, onde a brisa se fazia mais fresca e se podia respirar. Deitaram-me na areia, tiraram-me a roupa. Levaram-me até à borda da água e molharam-me com água do mar. As mãos, primeiro e a medo... E eu, que tinha chorado o caminho todo, calei-me. Subitamente, surpreendentemente, calei-me. Depois molharam-me os bracinhos, as pernas, todo o meu corpinho magro e exausto de tanta lágrima, de tanta vigília, de tanta fome. A minha mãe lembra-se que ela e a minha avó se entreolharam de espanto e olharam o mar com uma gratidão abençoada. Não sei quanto tempo ali estivemos, as três, à beira da água. Sei que se fez tarde e anoitecia... E então, elas tiveram medo de sair dali, medo que tudo recomeçasse... Mas eu nunca mais chorei. Adormeci no caminho de regresso e em casa bebi o leite todo que me deram. Claro que nesse verão regressei à praia todos os dias, cumpri os ritmos do sono de um recém-nascido, engordei e fui um bebé normal.
No ano seguinte ainda não tinha um ano quando regressei ao mar, num tempo em que se fazia quatro meses de praia e não se ouvia falar de protetor solar. A gatinhar primeiro, depois a andar, corria para as ondas mal me punham no chão. Foi o verão de todos os infernos porque não podiam tirar os olhos de cima de mim... Eu fugia, completamente hipnotizada por aquele azul, talvez perseguindo um estranho e misterioso chamamento que só eu ouvia... O chamamento poderoso que ainda hoje ouço. Talvez só o mar saiba o que é que eu tinha... Talvez  seja esse segredo guardado nas ondas que me faça, ainda hoje, serenar os demónios, secar todas as lágrimas...  
 
(A imagem que deu corpo a este texto foi-me gentilmente enviada por um leitor identificado, que parece entender a minha paixão pelo mar, e a quem agradeço com a oferta de um punhado de memórias. Esta noite, escrevi-me. E escrevi alguns silêncios... Muito obrigada!)

6 comentários:

Lídia Borges disse...


Ainda não me tinhas contado isso! :)

Gosto da imagem. Eu que também corro para o mar, como quando era criança nunca recebi dele tão expressiva declaração de amor. Enfim! Não pode amar a todos, a todas...

Um beijo

Anónimo disse...

Muito obrigado, Stora.

Hoje é o dia em que a Gaivota queria ser Mar...

;)

Anna disse...

É natural, Lídia... Quando estamos juntas há um milhão de assuntos fascinantes para pôr em dia :)

Saudades. Um beijo.

Anna disse...

Um abraço, Caríssimo.
:)

Anónimo disse...

http://www.youtube.com/watch?v=YrQ540x1FU0

Anónimo disse...

Anônimo da música acima, ela é linda. Repito muito essa palavra (linda), mas é que não sei... não consigo dizer outra.