segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Ó Stora...

A meio da tarde o meu filho mandou-me uma sms a contar que o Ramos Rosa tinha morrido. Li-a num intervalo entre duas aulas e emudeci... Dentro de mim, declamava o "Não posso adiar o amor", tentava descobrir se ainda o sabia de cor... E minutos mais tarde, eram mais lentos, mais arrastados os meus passos enquanto subia as escadas até ao segundo piso para ir dar a última aula do dia. Demorei-me à porta da sala, procurando as chaves dentro da pasta, envolvida pelas risadas alegres e pelas vozes dos alunos, também eles já cansados dos stores e dos toques, dos livros e dos intervalos... Cá dentro era ainda o poema do Ramos Rosa, atravessado na garganta, arranhando-me as sílabas, resgatando o resto da minha alegria. Ou da minha energia, não sei bem... E depois entramos e eles demoraram a serenar, é sempre assim a última aula, mais barulhenta, mais cansativa... Cumprimentei-os. Pedi-lhes silêncio. Sorri-lhes. Disse-lhes que lhes queria oferecer um poema. E disse-o de rajada, de um fôlego, sem hesitações ou pausas ou enganos... No fim ficaram em silêncio, atirando-me olhares curiosos e perguntei-lhes se conheciam o António Ramos Rosa. Não, nunca tinham ouvido falar. E pronto, foi o mote para lhes falar do autor, do lindíssimo livro Viagem através de uma nebulosa, de metáforas e de imagens, de heranças literárias e de património e riqueza cultural... Também falamos de morte e de vida, do amor que se adia, de solidão e de felicidade. Falamos de escolhas e de poesia. Falamos do Urbano Tavares Rodrigues, da Rosa Lobato de Faria, da Matilde Rosa Araújo e do David Mourão-Ferreira... falamos de escritores desaparecidos e de livros inesquecíveis... Alguns prometeram pesquisar e trazer um poema na próxima aula. Outros descobrirão quem foi António Ramos Rosa e contarão à turma. Talvez façam ainda um trabalho de grupo e uma coletânea de poesia... Falou-se num blogue da turma, criado para encerrar tesouros perdidos...
E depois tocou. Saímos e desci as escadas atrás deles, ouvindo-os falar ainda do Ramos Rosa, trocando ideias, distribuindo tarefas, negociando e organizando-se para a seleção de textos... Não lhes pedi nada... Só lhes abri caminho, só lhes mostrei que há pessoas que não merecem ser esquecidas, há pessoas a quem devemos a pureza da poesia e o respeito pela língua que nos une, esta pátria onde as armas são apenas as palavras, carregadas com as balas das emoções.


Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

António Ramos Rosa, in Viagem Através de uma Nebulosa


4 comentários:

Anónimo disse...

Não, não pode, ou não deve!

Lídia Borges disse...


Belíssimo, Paula!
E não me refiro só à tua forma de expressão que, como já te terão dito, é muito cativante, mas também ao facto de teres aproveitado um momento triste que te "tocou", transformando-o em trampolim para lançar sementes que encontrarão nos jovens, terreno fértil e produtivo.
Façamos germinar a poesia!

Um beijo

Anna disse...

Deste lado, eu não desisto...! Espero que os meus alunos também não...

Beijo, Lídia :)

deep disse...

É um dos meus preferidos. Alguns desses alunos aproveitaram decerto a aula e, se não for já, um dia lembrar-se-ão de Ramos Rosa e da professora que lhes falou dele.
Em situações idênticas, não perco a esperança de fazer nascer "bichinhos" em pelo menos um de vários alunos.