A primeira pergunta era difícil, pedia que descrevesse a memória mais antiga da infância. Em silêncio pousou a caneta e brincou com as pontas do cabelo, como sempre fazia quando se sentia desmoronar, enrolando-as devagar entre os dedos, deixando-as depois fugir com lentidão e escorregar sobre os ombros numa chuva macia e brilhante. Mordeu os lábios para que não tremessem e recordou. Pela porta entreaberta do consultório, o corpo do pai, caído de bruços no chão de longas tábuas de madeira dourada. O corpo do pai, definitivamente tombado, irremediavelmente perdido. Para sempre. Tinha quatro anos. Tinha no colo uma boneca loira com olhos azuis que abriam e fechavam... Tinha todo o medo no peito... Tinha uma dor estranha, funda, negra e fria, no lugar do coração.
Escreveu "Uma manhã de Natal" e leu a segunda pergunta. Outra vez uma memória, desta vez a mais feliz memória da infância. Sorriu e lembrou-se do colo do avô, do sorriso do avô, das histórias do avô, dos passeios de mãos dadas com o avô... Lembrou-se de todos os gestos, da voz, do cheiro do homem que mais amara na vida. O homem que substituira o seu pai, e a protegera, e a acarinhara... O homem que tinha perdido aos dez anos.
(...)
Inevitavelmente, o questionário ficou incompleto, como tantas outras coisas na sua vida...
Porque uma criança não devia perder pessoas... Uma criança não devia ser obrigada a fazer lutos.
7 comentários:
"Porque uma criança não devia perder pessoas..."
E quando a vida, madrasta, para além de fazer as crianças perder pessoas (pais) espera maquiavélica e pacientemente que essas crianças cresçam para as fazer voltar a sentir a dor, agora de perder uma criança (filhos) …
Valha-lhes as memórias do colo do avô…
Sem palavras.
Um único e profundo gemido: " Uma criança não devia ser obrigada a fazer lutos. "
Muito triste esse texto,porque nos leva a muitas perguntas da nossa vida inteira -todas sem respostas,sofridas e guardadas ,mesmo que não sejamos mais crianças.
Beijos.
Oficial e Cavalheiro, há perdas e dores que não se contam, que não se explicam, cujo grau de intensidade é impossível medir... Há dores tão infinitas que podem levar os homens à loucura.
Um beijo
Maria, eu sei que tu entendes...
Um beijo
Gizelda, obrigada pelas palavras e pela visita. Volte sempre :)
Beijinhos
Nesta vida, não perdi muitas pessoas!
As poucas que perdi, também nunca as ganhei e gozei a fundo.
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Também, não tenho muitas memórias da infância. Se é que tivee infância.
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Hoje as minhas memórias presentes são ausências em mim. Algumas nem quero recordar. Tornei-as eremitas no Convento das Coisas Más, para lá do Reino do Nunca.
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Hoje, apenas quero recordar o que não me causa dor. O resto é fumo.
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