segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Crónicas do Vento Salgado


A funcionária 528 olhou em volta, confirmou mais uma vez que tudo estava perfeitamente arrumado e, antes de sair, baixou o estore para que o sol não queimasse os livros antigos, alinhados por ordem alfabética na estante da Poesia. Depois desceu a escadaria arrastando os passos devagar, com pés de pedra que a puxavam toda para baixo, lhe encurvavam os ombros, desenhando-lhe uma silhueta estranha, enrolada para dentro como a dos búzios... No corredor cheio de luz, devolveu o sorriso a um aluno, acenou a outros, cumprimentou os colegas que se cruzavam com ela. Foi pacientemente que tomou o seu lugar na fila do bar, apetecia-lhe um café, o café que daria sentido à espiral de vertigens no seu peito vazio. Através dos imensos janelões, atirou o olhar para o lago do pátio interior, demorou-o no corpo negro de uma gaivota em contraluz, vigilante, preparando o salto que traria a morte a um peixe atrevido, à tona da água esverdeada. A morte de um peixe podia ser motivo para um poema... ou a cadeira derrubada na pressa das horas... ou a espuma das nuvens a galope, como cavalos selvagens tingindo pinturas... Coisas que ninguém via, coisas em que ninguém reparava. A funcionária 528 gostava de poesia. Tinha-se perdido dela há algum tempo, ou talvez lhe tivesse sido arrancada pelas lâminas do relógio, pela lista interminável das tarefas inadiáveis que guardava na pasta... Sentia falta da poesia, da sua pele rasgada, aberta em rabiscos de sangue nas palavras de um verso. Enquanto bebia o café, a funcionária 528 percebeu que há coisas que, não importa os hemisférios, não podem roubar-nos nem nos morrem nunca... E quem a observasse, perceberia o sorriso quase, quase feliz e leria nos seus olhos o poema secreto que como uma flor, nascia do caos quotidiano: um poema há muito esperado onde num céu cheio de nuvens a galope voava uma gaivota... Um poema que chorava a morte de um peixe... Um poema que desenhava uma cadeira tristemente tombada no chão dos dias. A funcionária 528 engoliu o cansaço com o café e respirou fundo. Sentia-se livre: tinha sucumbido à urgência da poesia, a invisível ponte entre o seu coração e a terra. 

6 comentários:

Lídia Borges disse...

Gostava de poesia! Ah, a vantagem que ela levava sobre as tarefas árduas do quotidiano!

Os contos que terminam com o "e foram felizes para sempre" deviam terminar, a partir de agora, com um "e descobriram a Poesia".

Belíssimo regresso!

Beijo

Lídia

Anna disse...

Tu e eu sabemos, são tantas as circunstâncias em que só a Poesia nos salva...
Obrigada Lídia, tinha saudades do meu cantinho... :)

Beijo

Manuel Veiga disse...

a poesia também se come, dizem-me...

... e alimenta!

beijo

Anna disse...

Plenamente de acordo, Herético :)

Um beijo

Gustavo disse...

São textos como este que nos resgatam do «caos quotidiano» e nos fazem sonhar... simplesmente sublime!

Abraço,

Gustavo

Anna disse...

Obrigada pela generosidade, Gustavo :)

Abraço retribuído.