terça-feira, 18 de março de 2014

Ó Stora...


A aula era no piso de cima e como já tinha tocado, apressei o passo, subi quase a correr a velha escadaria de mármore branco, polida pelos passos de tantas gerações, e desemboquei cansada no corredor onde fica a sala daquela turma. O largo corredor estava vazio. Inexplicavelmente vazio. Imediatamente percebi que me tinha enganado - mais uma vez - na sala e maldisse a minha memória de pintainho, rais' parta esta deambulação de um lado para o outro, nunca mais aprendo, uma pessoa nunca sabe onde vai trabalhar, porcaria de memória a minha, e agora onde é que eu os encontro...? E enquanto resmungava sozinha, ia abrindo a pasta, tirando os cadernos, os livros, - onde se meteu a droga do horário? - os óculos, - malditos números tão pequenininhos -, e finalmente abrandei a correria, o espanto crescendo perante a confirmação... - Era ali, estava certo na minha memória. A sala era aquela. Talvez estivessem atrasados, pensei. Meti a chave na porta e entrei, o segundo toque a soar estridente na sala deserta, a fazer vibrar as vidraças das janelas escancaradas. Esperei mais um pouco. E mais ainda. Estranhando, saí para o corredor e procurei o funcionário do piso que me disse que sim, que tinha visto a turma no intervalo anterior. - Mas então onde estão? - perguntei, já verdadeiramente enervada. - Saíram, sôtora. Saíram todos. Se calhar, como o dia está tão lindo, foram para a praia... - e o funcionário encolhia os ombros resignado - Sabe como é a juventude, a primavera deixa-os loucos... - Sim, eu sabia. Agradeci a informação e regressei à sala, a ira a crescer assustadoramente - Como é que eles se atreviam??? E ia pensando nas consequências daquela falta intercalada, daquela falta coletiva que daria direito a um procedimento disciplinar, e continuava sem acreditar que tinham tido a coragem de me fazer uma brincadeira tão grave... Liguei o computador, comecei a marcar as faltas de presença, escrevi o sumário e preparei-me para ficar ali a corrigir testes, no silêncio daquela sala banhada de sol, tentando ignorar o desdém de trinta mesas vazias que me enfrentavam geladas... Mas de súbito, passos apressados fizeram-se ouvir no corredor, muitas vozes abafadas e uma agitação estranha de risos que parou à porta da minha sala. Levantei os olhos dos trabalhos que corrigia, olhei o relógio e depois vi-os do lado de fora, através do vidro, acenando-me e sorrindo-me. Senti um alívio enorme ao vê-los, afinal tinha sido só um atraso, claro que eles nunca me dariam uma falta coletiva... Abri a porta e regressei à secretária, sentei-me e observei-os a entrarem em silêncio e em fila indiana, com as mãos atrás das costas, mas em vez de se sentarem nos seus lugares, iam-se dispondo em círculo, formaram um anel à minha volta... - Muito bem, quem vai explicar o que aconteceu? - perguntei. Nenhum falou. Às tantas, talvez a um sinal secreto, um por um, começaram a colocar rosas em cima da secretária... Rosas cor de rosa, com um cartão preso ao pé sem espinhos, singelamente forrado a papel de estanho. - Ó Stora, desculpe o atraso, deu-nos uma trabalheira enorme prender o poema à rosa... mas trouxemos-lhe os seus poetas todos, Stora... O Pessoa, o Eugénio, o David Mourão-Fereira, o Nuno Júdice, a Sophia, a Florbela, o Torga... Vieram todos dar-lhe os parabéns! E sorriam, sorriam muito... E eu, emudecida, de coração apertado, não me preocupei que me vissem com lágrimas nos olhos, que soubessem o quanto o seu gesto me tinha tocado... Enquanto os observava a regressarem calmamente aos lugares, ia pensando na maravilha e no privilégio que é ser professora de uns miúdos assim... E tive que ler-lhes o meu texto, eles mereciam-no... Li-o devagar, tão devagar quanto a minha emoção me permitia... No fim bateram muitas palmas, disseram - Tão lindo, Stora! - e nos olhos deles, no sorriso deles, na admiração sincera, a minha Menção Honrosa teve, realmente, o sabor de um 1º Prémio.

8 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns!
Eduardo

Anónimo disse...

O Captain! My Captain!

;)

Anna disse...

Muito obrigada, Eduardo :)

Anna disse...

Um filme inesquecível, Caríssimo.
Obrigada pela referência, da qual não me sinto merecedora...

:)

Maria Campos disse...

Adorei, Anna!
Como pudeste esquecer-te de me contar uma estória tão linda?
E parabéns, muitos, pelo teu 1º lugar, claro!

Um abraço desenhado numa rosa!

Maria Campos

Anna disse...

Maria, temos andado tão desencontradas... Obrigada pelas palavras e pelo carinho :)

Abraço retribuído :)

Gustavo disse...

Grande stora, capaz de transformar uma ira crescentemente assustadora na emoção de lágrimas incontidas. Ó sublime stora, ó sublimes alunos (mas que belíssimo gesto o deles) que se merecem, num privilégio que afinal é mútuo! :)

Anna disse...

:)
Obrigada, Gustavo.
Um beijo