Ela conhece-me quase desde que nasci. Não sei que espécie de laço nos une mas é indestrutível, indiferente aos preços bem mais convidativos das grandes superfícies comerciais, impermeável às ofertas do "pague dois leve três", impassível às ofertas em cartão, em talão, ou aos descontos no combustível... Ela sorri-me e abraça-me quando eu entro, e é um sorriso rasgado que ilumina uns olhos felizes, cada vez mais pequeninos e perdidos numa fina rede de rugas à medida que os anos vão passando. Chama-me querida. Chama-me amor. Um chamar sincero que denuncia um coração bom, uma alma simples e generosa.
Escolhe ela própria as peças de fruta e enquanto conversamos toma-lhes o peso de mansinho, afaga-lhes a pele e vai enchendo as sacas com cuidado e ternura. Conhece as minhas manias (Número par como sempre, não é amor?), os meus gostos (Maçãzinhas ácidas e sumarentas, querida), até os meus hábitos (Umas uvinhas docinhas para debicares enquanto escreves)... Dá-me tudo a provar - mesmo que eu não queira - e regista um peso sempre abaixo do valor ditado pela balança. Mima-me. E devolve-me as minhas memórias...
Hoje quando entrei já tinha a minha encomenda preparada, é assim nestes dias em que os braços não param para atender tanta gente... Só faltavam as nozes, as amêndoas e os figos, ela sabe que eu sou louca por figos e apontou-me os cestos carregadinhos - Prova, amor. São de Trás-os-Montes, deliciosos...! - E os olhos sorriam, toda ela sorria antecipando a cena de ver-me provar figos de olhos fechados, na memória, como um fogo, ardiam as lembranças da figueira imponente da casa transmontana dos avós que eu trepava sem medo, tantas vezes esmurrando mãos e joelhos para roubar os frutos mais maduros, as nozes que partia com uma pedra sentada ao sol na eira quente e a amêndoa perfumada e macia forrando o chão do sotão, a secar lentamente na penumbra doce e silenciosa, enquanto a madeira estalava devagar... Provei de tudo e trouxe um pouco de cada qualidade. Sim, paguei mais, muito mais do que pagaria num hipermercado... Gastei mais mas saí mais rica daquela pequenina frutaria de bairro, com as memórias avivadas numa nitidez que faz bater mais forte o coração, a boca a saber a mel e os lábios pegajosos da doçura que roubei à minha infância... Ao Natal da minha infância.
5 comentários:
isso é lindo: "devolve-me as minhas memórias". que sejam doces, como são tuas palavras, até a "maçãzinha ácida", onde os olhos sorriem junto, negando um beijo.
Tão bom ver o mundo pelos seus olhos...
Nozes, as amêndoas e os figos "humanizados"...
É assim na tua terra.
Quando vou ao peixe, quase não me deixam escolher. Escolhem por mim e eu confio "embalada" em tantos "querida", "meu amor" e coisas do género. ;))
Beijo
FELIZ NATAL!
Obrigada aos comentadores anónimos pela ternura...
Um Feliz Natal a ambos :)
É assim na minha terra, Lídia.
Tu sabes!
Beijo,
FELIZ NATAL!
(Até sexta...!)
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