quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Palavras imortais


(…) Foi a noite mais bela de todas as noites que me adormeceram
Dos nocturnos silêncios que à noite de aromas e beijos se encheram
Foi a noite em que os nossos dois corpos cansados não adormeceram
E da estrada mais linda da noite uma festa de fogo fizeram
Foram noites e noites que numa só noite nos aconteceram
Era o dia da noite de todas as noites que nos precederam
Era a noite mais clara daqueles que à noite amando se deram
E entre os braços da noite de tanto se amarem, vivendo morreram (…)

Ary dos Santos

29


Desde miúda que me fascina o dia 29 de fevereiro. Nunca percebi, continuo a não perceber porque razão ele existe, desconcerta-me a fugacidade da sua aparição, a sua não repetibilidade todos os anos, como os demais dias do calendário. Não conheço ninguém que tenha nascido neste dia e no entanto devem nascer bebés em todo o mundo nas próximas 24 horas, gente vai morrer, casar, divorciar-se, fazer operações cirúrgicas, assinar grandes tratados ou tomar decisões definitivas. Penso em datas mágicas, que gostamos de ver gravadas na memória e no estranho que será terem de ser celebradas com veracidade apenas de quatro em quatro anos. Amanhã viveremos uma espécie de bónus que a vida nos concede, um dia a mais neste ano de 2012. E depois, só em 2016 o mês de fevereiro será maior. É uma espécie de dia fantasma onde supostamente nada de especial deve acontecer, onde o mundo rodará normalmente sobre o seu próprio eixo sem deixar marcas ou vestígios, para não perturbar recordações futuras. Que assim seja, um dia que passe sem deixar pegadas no chão do ano, um dia que não comprometa os já tão emaranhados labirintos da memória.
Este ano é bissexto e faltam 305 dias para terminar, diz-me o Google. Por isso, a todos os meus visitantes e amigos, desejo um dia sereno.   

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Aqueles que andam por aí


As pessoas não morrem: andam por aí. Quantas vezes sinto à minha volta, não apenas a presença, o cheiro, a cumplicidade silenciosa, palavras que saem da minha boca e me não pertencem, penso
- Não fui eu quem disse isto
e realmente não fui eu quem disse isto, foram as pessoas mortas, exprimem opiniões diferentes das minhas, aproximam-se, afastam-se, vão-se embora, regressam, não me abandonam nunca. Em que parte da casa moram, qual o lugar onde dormem, devíamos deixar pratos a mais na mesa, talheres, copos, almoço que chegasse, os guardanapos nas argolas, um lugar no sofá, metade do jornal, dado que não se sumiram: andam por aí, invisíveis (invisíveis?) densas de humanidade, tão próximas.
Os cemitérios são lugares vazios, só árvores, sem defuntos, só a gente, que arranjamos as campas, sem entendermos que não existe ninguém lá em baixo. Uns pardais nos choupos, nada. Que sítios tranquilos, os cemitérios, que inútil a palavra defunto.
Segredam-nos
- Não faleci, sabes?
e não faleceram, é verdade, continuam, na nossa lembrança, continuam de facto, pertinho. Quase sem ruído mas tomando atenção, percebem-se, quase não ocupando espaço mas, reparando melhor, ali, iguais a nós, tão vivos. Andam por aí, pertencem-nos, pertencemos-lhes, não deixamos de estar juntos: Quando é necessário poisam-nos a palma no ombro. E agora, na mesa a escrever isto, espreitam o papel, sabem, melhor do que eu, as palavras que se seguem.
Há palmas tão bonitas quanto os pássaros. Daqui a nada, sem que ela dê por isso, começa a cantar. E, ao cantar, começo a escutar as ondas. Uma após a outra. Para mim. Atrás destas janelas e destas árvores há-de haver uma praia. Reparem.

António Lobo Antunes, "Aqueles que andam por aí" in Revista Visão (19 a 25 de janeiro 2012)

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Na rota do silêncio


Esta noite dou-te a minha mão...
leva-a
e deixa que os meus dedos
encontrem
sozinhos
a serenidade e o silêncio
no mapa dos teus olhos. 

sábado, 25 de fevereiro de 2012

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Crónicas do Vento Salgado


Chegam num bando ruidoso arrasando o silêncio, arrastam cadeiras e mesas, procuram espaço no café pequenino e escuro. São seis, duas raparigas e quatro rapazes. Elas vestem pouca roupa, parecendo negar o frio cortante como facas, os piercings no umbigo espreitando com o olho metálico gelado e brilhante. Falam muito alto, indiferentes ao resto do mundo. Uma das raparigas tem uma tatuagem no pescoço. Uma tarântula. Ri muito e fuma nervosamente, expelindo o fumo em círculos perfeitos e grossos. Falam do facebook, das fotos do dia dos namorados e da avalanche de comentários dos amigos. A rapariga da tatuagem diz palavrões, atira a beata para o chão, reclina-se na cadeira e olha provocantemente os rapazes. Um deles, vestido de negro, com o cabelo dentro de uma bóina de lã que lhe tomba sobre a nuca, tem os olhos presos ao ventre redondo onde o piercing o desafia, num absoluto fascínio. Depois pega no telemóvel e a música aos gritos invade o café. Todos riem e dançam nas cadeiras, felizes.
Aposto que nunca ouviram falar da Troika ou do IVA, da política de contenção, do desemprego ou da crise. O futuro não os preocupa e nenhum sonho os assusta. Têm quinze anos e todas as certezas. São grandes, são enormes. São donos do mundo. São donos de todos os mundos.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Para que serve o Amor? Para perder o medo.


Ele agarrou-lhe na mão, e ela agarrou-lhe na mão, e ficaram de mãos agarradas, primeiro a olharem para as mãos, depois levantando lentamente os olhos, que por fim se encontraram, perdendo-se uns nos outros, sem já saber quem via ou era visto, os olhos ao mesmo tempo a verem e a serem vistos, nus, sem qualquer pudor, como se tudo fosse possível uma vez mais, uma última vez, sem esquecer que o que lhes estava a acontecer é impossível, quanto mais esquecer.

Pedro Paixão, Muito, Meu Amor


terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

O Primeiro Beijo


Durante todas as noites desse verão, as estrelas foram líquidas no céu. Quando eu as olhava, eram pontos líquidos de brilho no céu. Na primeira vez, encontrámo-nos durante o dia: eu sorri-lhe, ela sorriu-me. Dissemos duas ou três palavras e contivemo-nos dentro dos nossos corpos. Os olhos dela, por um instante, foram um abismo onde fiquei envolto por leveza luminosa, onde caía como se flutuasse: cair através do céu dentro de um sonho.
Naquela noite, fiquei a esperá-la, encostado ao muro, alguns metros depois da entrada da pensão. As pessoas que passavam eram alegres. Eu pensava em qualquer coisa que me fazia sentir maior por dentro, como a noite. As folhas de hera que cobriam o cimo do muro, e que se suspendiam sobre o passeio, eram uma única forma nocturna, feita apenas de sombras. Primeiro, senti as folhas de hera a serem remexidas; depois, vi os braços dela a agarrarem-se ao muro; depois, o rosto dela parado de encontro ao céu claro da noite. E faltou uma batida ao coração.
O mundo parou. Sombras pousavam-lhe, transparentes, na pele do rosto. O ar fresco, arrefecido, moldava-lhe a pele do rosto. E o mundo continuou. Ajudei-a a descer. Corremos pelo passeio de mãos dadas. A minha mão a envolver a mão fina dela, a força dos seus dedos dentro dos meus. Na noite,os nossos corpos a correrem lado a lado. Quando parámos, as nossas respirações, os nossos rostos admirados um com o outro: olhámo-nos como se nos estivéssemos a ver para sempre. Quando os meus lábios se aproximaram devagar dos lábios dela e nos beijámos, havia reflexos de brilho, como pó lançado ao ar, a caírem pela noite que nos cobria.

José Luís Peixoto, Cemitério de Pianos

domingo, 19 de fevereiro de 2012

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Post Secret


Ser pedra, raiz, muro. Invisível aos olhos dos passantes. Ser qualquer coisa debaixo do chão, terra ou bicho, onde nenhum olhar me encontre. Escuridão ou fantasma ou silêncio. Ser pó sobre os móveis. Esconder-me do mundo, escorregar para o vazio e encontrar um corredor entre a luz e o sonho. Ser apenas uma memória longínqua, personagem esquecida de uma história sem final feliz. Ser um resto de nada, entre ruínas e estilhaços. Poder fechar os olhos... Chorar.
Ou fugir.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

As palavras mais belas


As palavras mais belas são as que nascem
do teu corpo: cabelos, lábios, ombros, seios,
até o ventre, e o que entre as coxas se esconde.
Escrevo-as devagar, como se lhes tocasse; e
cada uma delas é como um espelho, de onde
se libertam as tuas mãos, os dedos, um joelho,
olhos que beijo num murmúrio de segredos.

E pedes-me significados, símbolos, primeiros
e segundos sem idos. Não te sei dizer senão que
corpo é o teu corpo, centro um secreto umbigo,
pele a mais branca neve no horizonte desta
subida leve. Se me estendes os braços, entro
num abrigo de floresta: se me abres os ramos,
é na mais doce gruta que entramos.

Precipitam-se sinónimos, adjectivos sem
objectivo, pronomes enfáticos e possessivos,
sílabas perdidas na falésia do desejo. Mas
fecho o livro. Estou farto de palavras, é a ti
que eu quero. E faço-as voltar até de onde
nasceram: cabelos, lábios, ombros, seios, até
o ventre, e o que entre as coxas se esconde.


Nuno Júdice, Dicionário

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Até ao fundo do mundo que me deste


Mas ensinaste-me
a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou,
sermos um apenas no amor que nos une,
contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor:
ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua
voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo
esse que mal corria quando por ele passámos,
subindo a margem em que descobri o sentido
de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo
que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor,
de chegar antes de ti para te ver chegar: com
a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água
fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu:
a primavera luminosa da minha expectativa,
a mais certa certeza de que gosto de ti, como
gostas de mim, até ao fundo do mundo que me deste.

Nuno Júdice

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Alma gémea


As pessoas pensam que uma alma gémea é o seu encaixe perfeito, e é isso que toda a gente quer. Mas uma verdadeira alma gémea é um espelho, é a pessoa que te mostra tudo aquilo que te prende, a pessoa que te chama a atenção para que possas mudar a tua vida. Uma verdadeira alma gémea é, provavelmente, a pessoa mais importante que alguma vez conhecerás porque irá derrubar os teus muros e despertar-te à força. Mas viver com uma alma gémea para sempre? Não. Demasiado doloroso. As almas gémeas entram na nossa vida apenas para nos revelar outras camadas de nós próprios, e depois vão embora.

in Eat, Pray, Love

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Palavras roubadas


 
E quando a tempestade tiver passado, mal te lembrarás de ter conseguido atravessá-la, de ter conseguido sobreviver. Nem sequer terás a certeza de a tormenta ter realmente chegado ao fim. Mas uma coisa é certa. Quando saíres da tempestade já não serás a mesma pessoa. Só assim as tempestades fazem sentido.

Haruki Murakami

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Talvez


A palavra chega de mansinho e enrosca-se em mim, a pedir guarida. Finjo não a ver. Insinuante, não desiste. Ondula e escorrega como algas, as letras prendem-se-me preguiçosas às pontas dos dedos e sorriem-me, como luzes brilhantes ao fundo dum túnel. Gosto quando as palavras me sorriem. Gosto quando me sussurram magias e abrem janelas dentro de mim, penteando a chuva e os vendavais, transformando em esperança o que já foi desespero. Gosto de palavras teimosas, que escrevem dúvidas onde já houve fundas certezas. Sorrio-lhe eu também, escrevo a palavra insistente, letra a letra, apagando as fogueiras onde o coração queimava devagar. Teimosa, a palavra olha-me nos olhos. Desafia-me, atrevida. Respiro devagar... e desisto. 
Acredito por fim, que talvez.

Da mágoa


Em silêncio, um vento frio pousou nos beirais sombrios do coração.
E os sonhos, um por um, recolhem as asas entristecidas...

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Na viagem da pele

E às vezes, o sonho do mar a esculpir em delicadeza de espuma, a rota definida na vertigem dos teus ombros...

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Do Silêncio


O que mais me preocupa não é o grito dos violentos, nem dos corruptos, nem dos desonestos, nem dos sem caráter, nem dos sem-ética.
O que mais me preocupa é o silêncio dos bons.

Martin Luther King

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Do Tempo


O tempo não cura tudo. Aliás, o tempo não cura nada, o tempo apenas tira o incurável do centro das atenções.

Martha Medeiros