quarta-feira, 20 de outubro de 2010

No fundo da memória


Recordo. Os olhos, sobretudo. E as mãos. Talvez fosse por isso que toda a gente o odiava. Talvez fosse pelo olhar endurecido e cruel, ou quem sabe, pelas mãos enormes e calejadas, como garras ou tenazes. Vivia como um bicho uma vida de solidão e de silêncio, longe dos homens e das vozes e apedrejava por maldade os cães vadios. Uma vez, por acaso, ouvi-o cantar e abrandei o passo disfarçadamente roubando-lhe a medo a música suave. Era velho e chorava. Nunca esqueci o seu ar escorraçado e de vez em quando julgo encontrá-lo ainda, nos rostos que na rua se cruzam comigo e me olham sem me ver. Fascinavam-me os seus pés descalços e entristecia-me profundamente o semblante perdido de quem por acidente ou por engano, vivia uma vida trocada no mundo errado...
Recordo. Talvez só eu tivesse razão...
Sim, a vida mostrou-me que é verdade. Todo o deserto possui um poço em algum lado.

6 comentários:

Lídia Borges disse...

Comovente, o teu texto.
É preciso que se olhe vendo, se estranhe... Quando a marginalidade for aceite como coisa natural,os homens terão perdido a sua qualidade de seres racionais.

Um beijo

Anónimo disse...

O clássico conto de fadas.
Provavelmente protagonizou sem perceber um remake d’A Bela e o Monstro.
Para além da música, roubou-lhe mais alguma coisa? Permitiu que ele lhe mostrasse o que havia para lá do aspecto escabroso? Provavelmente tratava-se dum belo príncipe vítima de poderoso feitiço e que envergonhado, mascarava uma enorme beleza interior (no fundo a verdadeira beleza) com o aspecto agressivo e rude dum horrível monstro.
Bastar-lhe-ia sentir-se “amado” para quebrar o feitiço…
Se porventura lhe proporcionou esse estado de alma, então parabéns!
Porque você tinha razão…

Cumprimentos do Pedro Gaivota

PS: Se os meus comentários estiverem a tornar-se muito lamechas, por favor alerte-me. Esticar-me-ei no divã do primeiro psicólogo que encontrar.

Anna disse...

Lídia, quase nunca vemos a solidão, o abandono, a miséria nas ruas. Ver incomoda e faz doer... daí a cegueira de que falava o Saramago. Como ele era grande nas suas palavras!

Beijo

Anna disse...

Pedro, lamento... nem eu era uma princesa prisioneira, nem ele um Monstro apaixonado... Era só um velho perdido nas ruas de uma cidade que o olhava com indiferença, se não com desprezo... Foi há muito tempo e encontraram-no morto uma manhã no jardim em frente da csa da minha avó. Hoje acredito que se o tivessem abrigado e medicado, teria sido possível encontrar o poço que existe em todos os homens. Infelizmente, ainda vivemos num país onde os velhos morrem nas ruas, num abandono absoluto. Nós é que não os vemos.
Como vês,não há nada de libidinoso nesta história onde qualquer semelhança com um conto de fadas terá sido mera coincidência.

P.S - Não é direito meu julgar o tom ou o teor dos comentários das pessoas que simpaticamente me visitam e generosamente comentam os meus textos. Por isso, não serei eu a responsável pela ida ao psicólogo...
Volta sempre :)

Anónimo disse...

Começo por vaguear pelas ruas, ao acaso, observando tudo o que se passa à minha volta: As pessoas que comigo se cruzam, a música de uma sinfonia de aves a cantar, o cheiro a camomila que paira no ar… Enfim, tudo que esta cidade tem é recebido pelo meu espírito, de forma a que, também eu, lhe pertença. Ao virar de uma esquina, paro no início de uma rua muito movimentada e reparo nos turistas a tirarem fotografias, a comprarem postais para depois mandarem aos amigos, a adquirirem coisas sem significado nenhum só pelo simples prazer de poderem gastar mais um punhado de moedas. Ao fundo da rua avisto um pobre mendigo, com as suas vestes esfarrapadas, arrastando-se pela rua com as palmas das mãos, os joelhos em ferida, perante o olhar indiferente e frio destes senhores do capitalismo. Esta imagem fere o mais profundo da minha alma porque também eu já soube o que é mendigar, chorar e sorrir para receber uma simples moeda.
Entro numa papelaria e compro um bloco de folhas de desenho e dois lápis de carvão. Pego no troco e dou ao pobre mendigo, olhando-o corajosamente. Ele retribui o olhar e inclina-se em sinal de agradecimento.
Sento-me num banco de jardim, a alguns metros dele, observando a sua luta desesperada para conseguir aquilo de que precisa: Sobreviver!
Arranco uma folha do bloco e começo a desenhá-lo, completamente só e minúsculo numa autêntica floresta de gigantes inacessíveis.


Escrevi este trecho há uns 15 anos. Sim, em Salamanca. Ao ler o teu post, lembrei-me dele. E decidi partilhá-lo aqui...
Desculpa a ousadia. Mas, tu sabes... foi um impulso... mto "De Profundis".

Um sorriso

Anna disse...

Alquimista, ainda bem que a leitura do meu texto provocou em ti um impulso tão profundo que te levou a generosamente partilhar comigo um texto antigo e querido... Tu sabes o que eu penso, tens que acabar o teu romance, aqui ou em Salamanca... Há projectos que fechamos à chave numa gaveta e adiamos sine die mas eles acabam por voltar, voltam sempre... e pedem-nos que os abracemos. E só então temos paz.

Obrigada pela visita e volta sempre :)

Um beijo