segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

A hora do Lobo

António Lobo Antunes esteve há dias na Biblioteca Municipal da minha cidade a promover o seu último livro, "O meu nome é Legião".
O evento estava marcado para as 21.30 mas teve início quase uma hora mais tarde. Alguém da comitiva ter-se-á sentido mal - foi-nos dito. Quando finalmente chegou, António Lobo Antunes não sorriu, dirigiu-se ao local que lhe estava destinado e depois de se ter sentado, foi logo informando que falava muito baixo porque não gostava de gritos. E eu, sentada na primeira fila, pertíssimo dele, olhei-o de soslaio e tentei encontrar empatia com aquele escritor afamado de irónico, cínico, altivo, arrogante, enfim, intratável... E depois, ele começou a falar. Falou de tudo um pouco, num discurso claro que escorria límpido e sereno, intimista e confessional, reconfortante... Falou das palavras, dos livros, dos escritores e dos leitores; da sua adolescência e da experiência inesquecível como jogador de hóquei em patins ao serviço do Benfica; da sua actividade como médico psiquiatra, dos doentes depressivos e dos esquizofrénicos; falou da difícil relação com o pai e com uma das filhas que não viu nascer e que foi obrigado a conquistar; da guerra em África para onde foi atirado e das cicatrizes que com ele trouxe; dos amigos que perdeu e que eu também amo, o José Cardoso Pires e o Eugénio de Andrade; da música de Schubert e da poesia de Byron e de Conrad; da beleza feminina como musa inspiradora das suas obras; de travestis, prostitutas e homosexualidade... Falava realmente em tom baixo, quase de solilóquio, e com uma nota melancólica a atravessar-lhe o brilho e a claridade dos profundos olhos azuis... e eu ia-lhe bebendo as palavras, tentando reter na memória as frases que faziam todo o sentido: " Os grandes livros estão cheios de silêncios...; o escritor não procura a palavra, espera-a...; vivemos todos profundamente sós, carregando feridas, dores e cicatrizes da infância que nunca curamos...; as palavras têm música e o escritor escolhe a que tem mais luz...". Sobre o livro que se lançava pouco foi dito, porque Lobo Antunes quando acaba um livro, abandona-o, esquece-o de imediato, oferece-o aos leitores.E são os leitores que fazem os livros, que os descobrem, que os sentem. Explicou apenas que a palavra Legião significa muitos e nós somos muitos... Disse-o com esta simplicidade desconcertante, como foi simples tudo o que disse.
Poderia ter ficado ali horas a ouvi-lo, sem o interromper, apreciando o natural bordar do pensamento de um Senhor Escritor que assume o que sente e o que diz, sem papas na língua, sem medo do que possam pensar a seu respeito, sem qualquer laivo de hipocrisia ou dissimulação. E eu pensei com os meus botões, como somos às vezes injustos e levianos no julgamento precipitado e básico que fazemos dos outros, como este escritor tem sido tão superficialmente apelidado com atributos pouco meigos e até ofensivos... ele está-se nas tintas para isso, tenho hoje essa certeza... e ainda bem que saí de casa numa noite gelada para conhecer Lobo Antunes, porque regressei com o pensamento cheio, com a alma confortada e com a certeza de que quando crescer, gostava de saber exprimir-me assim, acariciar assim as palavras...


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