quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Palavras adiadas


Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos…

Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã…

Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro.

Álvaro de Campos, "Adiamento" in Obra Poética

Mar. Tempo.


Fotografia de Rui Maio Sousa

No mar não há primavera nem outono. No mar o tempo não morre.

Sophia de Mello Breyner Andresen, in A Menina do Mar

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Nas linhas das mãos


(...)

É nas linhas das mãos que os deuses escrevem
os mais belos romances. Nas nossas, porém, somente
elaboraram um divertimento, um esboço, um rascunho,
nem sequer literatura.

Maria do Rosário Pedreira

domingo, 19 de janeiro de 2014

Na raiz da terra

 
Quando fiz oito anos, a minha avó paterna ofereceu-me um lenço de seda num tom suavíssimo, cor de rosa seco. Seria um presente banal não fosse a pintura, feita com as suas próprias mãos, de um ramo de flores silvestres, num dos cantos do tecido, que aos meus olhos de criança pareceu uma explosão de cor, ou um grito de alegria, a festejar o meu aniversário... Lembro-me de ter ficado muito tempo a olhá-lo e de ter passado os meus dedos pequeninos sobre a aspereza da tinta, com muito cuidado, receosa de que tudo aquilo desaparecesse ou se manchasse por culpa minha. A minha avó sorriu e ensinou-me o nome das flores que pintara - botões de ouro, violetas, narcisos, tulipas bravas e miosótis. A inspiração viera-lhe num dos habituais passeios domingueiros a Macedo de Cavaleiros, terra que ela adorava e onde ia frequentemente visitar amigos e familiares. Talvez por isto, Macedo foi sempre uma terra que desejei conhecer, um daqueles destinos onde cedo decidimos que havemos de ir, mas que por circunstâncias da vida vamos adiando sine die...
No próximo domingo, um evento literário, promovido pela Poética Edições, levar-me-á finalmente a Macedo de Cavaleiros, uma cidade aninhada entre rios, montanhas e xistos verdes, o que prova talvez que o que nos pertence acaba por vir ter connosco... A apresentação do livro Sementes Daqui, de Lídia Borges, e uma Tertúlia informal, à roda das palavras, serão o mote para eu tentar encontrar as flores silvestres eternizadas na seda de um lenço, pelas mãos da avó Olímpia. Falar-se-á de sementes. E de raízes. Apesar do frio, apesar da distância, se puder, venha conversar connosco.

sábado, 18 de janeiro de 2014

Palavras de Amor

 
Meu amor meu amor
meu corpo em movimento
minha voz à procura
do seu próprio lamento.

Meu limão de amargura meu punhal a escrever
nós parámos o tempo não sabemos morrer
e nascemos nascemos
do nosso entristecer.

Meu amor meu amor
meu nó e sofrimento
minha mó de ternura
minha nau de tormento

este mar não tem cura este céu não tem ar
nós parámos o vento não sabemos nadar
e morremos morremos
devagar devagar.

José Carlos Ary dos Santos, "Meu amor, meu amor" in Obra Poética

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Post secret


Percebemos como andamos cansados quando descobrimos, tarde demais, que acabamos de lavar os dentes com creme da barba.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Do desamor


Começa-se por desaprender de amar os outros e termina-se por não se encontrar nada mais digno de amor em si mesmo.

Friedrich Nietzsche

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Nas asas das palavras


A boca,
onde o fogo
de um verão
muito antigo
cintila,
a boca espera
(que pode uma boca
esperar
senão outra boca?)
espera o ardor
do vento
para ser ave,
e cantar.

Eugénio de Andrade, in Obra Poética

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Quando os homens choram

 
Gosto de futebol. Gosto muito. Para desespero do meu filho, que me considera uma traidora, não me deixo levar por histerias, sou indisciplinada no amor clubístico e torço por uma série de equipas... Gosto do Varzim, do Porto, do Braga, do Benfica e até da Briosa... Entendo o fenómeno do futebol como uma derrocada de emoções, uma catarse que leva um adepto ferrenho do riso às lágrimas, do desespero à alegria, da fúria à loucura, da excitação ao desalento, numa fração de segundos... Capaz de mobilizar multidões, o futebol é um dos espetáculos mais emotivos para a maioria das pessoas que, infelizmente, se deixa dominar pela irracionalidade e se transforma numa besta agressiva, sectária e violenta, atacando os rivais, arrancando cadeiras ou queimando bancadas, rasgando cartões de sócio e acenando com lenços brancos ao treinador incompetente... É o lado mais negro de um desporto que envolve uma pesada máquina de fazer milhões, da qual os passes dos jogadores, cheios de números, são apenas a ponta do iceberg... 
Hoje o Cristiano Ronaldo ganhou a Bola de Ouro 2013. Presa ao ecrã, vi um jovem emocionado e humilde, despretensioso, subir ao palco para receber o seu lindíssimo troféu. No momento do discurso, Ronaldo surpreendeu-me e falou em Português, a mais bela de todas as línguas. Descontrolado pela emoção, deixou que as lágrimas lhe corressem pelo rosto e foi breve nas palavras que usou, sem se preocupar se seria entendido pela plateia que o escutava na Suiça, até porque palavras como "mãe", "filho", "Eusébio" e "Madiba" são universais... Se dúvidas houvesse, falariam por ele os seus olhos rasos de água, a voz que tremia, as feições contraídas num misto de felicidade e dor tão intensas, que são muito poucos os seres humanos que alguma vez experimentaram um minuto assim ao longo de uma vida inteira... São momentos inesquecíveis que a memória grava e guarda para a eternidade. Sempre gostei do Cristiano Ronaldo, do futebol bonito que joga, do seu profissionalismo, das raízes humildes que nunca negou ou tentou esconder, do amor incondicional à família... Hoje, por alguns minutos, com toda a justiça, o mundo rendido aplaudiu-o de pé, reconhecendo-lhe o enorme valor. E Ronaldo soube agradecer com humildade, ciente da sua pequenez, da efemeridade da juventude do seu corpo perfeito que um dia o há de trair e envelhecer, como todos os corpos... Em lágrimas, despudoradamente, homenageou os seus mortos e os vivos que ama, revelando a fragilidade em que se transforma todo o homem capaz de viver um momento único e indescritível. Cresceu e foi ainda maior, entre os maiores. 
Parabéns, CR7. E não mudes nunca, miúdo.  

domingo, 12 de janeiro de 2014

Um tudo nada...

 
E pergunto-te: que outras palavras queres?
A música sonora de um ócio?
O espesso manto com que o veludo se escreve?
O fundo luminoso do azul?
Poderia dar-te todas as palavras na caixa do poema;
ou emprestar-te o canto efémero em que se escondem do mundo.
Mas não é isso que me pedes.
E a vida que pulsa por entre advérbios e adjectivos esfuma-se depressa, quando
procuramos seguir a linha do verso,
O que fica?, perguntas-me.
Um encontro no canto da memória.
Risos, lágrimas, o terno murmúrio da noite.
Nada, e tudo.

Nuno Júdice, in Obra Poética

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Mar. Amor.


Se o mundo não tivesse palavras
a palavra do mar, com toda a sua paixão,
bastava. Não lhe falta
nada: nem o enigma nem
a obsessão. Entregue ao seu ofício
de grande hospitaleiro
o mar é um animal que se refaz
em cada momento.
O amor também. Um mar
de poucas palavras.

Casimiro de Brito