Clarice Lispector
Que dias há que na alma me tem posto/ um não sei quê, que nasce não sei onde,/ vem não sei como, e dói não sei porquê. - Luiz Vaz de Camões
domingo, 29 de abril de 2012
sexta-feira, 27 de abril de 2012
Palavras roubadas
Queria falar do que não tem concerto:
as letras desenhadas e compostas
com que confundo o espaço do papel,
a angústia compassada no contar
e a súbita alegria de ser eu
penosamente, às duas da manhã
Queria escrever do que não tem lugar:
a branca, doce e sonolenta estrada
onde espaçadas as palavras crescem,
suavizadas pelo lento sono
que devagar percorre as coisas todas
penosamente, às duas da manhã
Queria dizer do que não tem conserto:
ou seja, eu; ou seja, o papel branco
sombrio agora por já ser demais,
as letras excedentes e sonoras
desmembrando o silêncio e a noite toda
penosamente, às duas da manhã
Só então falarei do que ficou:
compassada alegria desenhada
na angústia de dizer sem me contar,
o papel confundido de impotente
e todavia prontas as palavras.
Quase às três da manhã. Penosamente.
Ana Luísa Amaral, "Entre as Duas e as Três" in Coisas de Partir
quarta-feira, 25 de abril de 2012
Liberdade
Mil vezes a prenderam mil vezes cresceu.
E pulsa em nós como o pulsar da própria vida
sabe ao sal deste mar tem a cor deste céu
no meu país há uma palavra proibida.
No meu país há uma palavra que se diz
com a mesma ternura da palavra irmã.
Palavra quente como o sol do meu país
palavra clara como é cada manhã
apesar da tristeza lá no meu país.
No meu país há uma palavra que se escreve
sobre os muros à pressa pela noite dentro.
Uma palavra assim nenhuma língua a teve
tão ausência-presença tão feita de vento
tão impossível de apagá-la onde se escreve.
No meu país há uma palavra onde se guarda
tudo o que se não teve tudo o que não foi.
Por ela a humilhação fabrica uma espingarda
e há um tempo de luta no tempo que dói
nessa palavra que nos guia que nos guarda.
Palavra que murmura nos verdes pinheiros
o recado que o mar vem escrever nas areias.
Se já em nós morreram velhos marinheiros
há uma palavra que semeia em nossas veias
um país que murmura nos verdes pinheiros.
No meu país em cada homem há uma palavra
que rasga as trevas e as prisões: palavra-chave
capaz de transformar em asa a mão que lavra.
E é inútil prenderem-na que é luz e ave
no meu país em cada homem essa palavra.
Palavra feita de montanhas praias vento.
De verde pinho e mar azul. De sol. De sal.
Não vale a pena proibirem o pensamento.
Há uma palavra clandestina em Portugal
que se escreve com todas as harpas do vento.
Manuel Alegre, "No meu país há uma palavra proibida" in O Canto e as Armas
sábado, 21 de abril de 2012
Terra. Chão. Raízes.
Havia um perfume adocicado muito intenso que se desprendia da cesta das maçãs e que eu não sei escrever... Nos degraus de pedra ancorava um raio de sol onde se aninhavam quietos os lagartos e nas asas das aves, inundadas de azul, estavam gravadas todas as rotas... Tudo estava certo, o mundo desdobrava tardes infinitas de pés descalços na terra tão seca, que era a alegria suprema desenhar no pó da pele enigmas secretos com o dedo molhado de saliva. E ríamos... O mundo era tão grande, o mundo era enorme...! Encostávamos as costas à cal das paredes para lhes sentir o calor e lambíamos as mãos pegajosas de compota vermelha e de sumo de laranja... No velho tanque, cheio sempre de água gelada, mergulhávamos o rosto e parávamos de respirar o máximo que pudéssemos, a ouvir o som distorcido das gargalhadas que só sabemos dar na infância... Éramos peixes, éramos pássaros. E não tínhamos medo.
O Mar das Palavras
Um rio de escondidas luzes
atravessa a invenção da voz:
avança lentamente
mas de repente
irrompe fulminante
saindo-nos da boca
No espantoso momento
do agora da fala
é uma torrente enorme
um mar que se abre
na nossa garganta
Nesse rio
as palavras sobrevoam
as abruptas margens do sentido
Ana Hatherly, "Um Rio de Luzes" in O Pavão Negro
quinta-feira, 19 de abril de 2012
Segredos imperfeitos
mas as palavras estão prontas sobre os lábios como
segredos imperfeitos ou gomos de água guardados para o
verão.
E, se de noite as repito em surdina, no silêncio
do quarto, antes de adormecer, é como se de repente
as aves tivessem chegado já ao sul e tu voltasses
em busca desses antigos recados levados pelo tempo:
Vamos para casa? O sol adormece nos telhados ao domingo
e há um intenso cheiro a linho derramado nas camas.
Podemos virar os sonhos do avesso, dormir dentro da tarde
e deixar que o tempo se ocupe dos gestos mais pequenos.
Vamos para casa. Deixei um livro partido ao meio no chão
do quarto, estão sozinhos na caixa os retratos antigos
do avô, havia as tuas mãos apertadas com força, aquela
música que costumávamos ouvir no inverno. E eu quero rever
as nuvens recortadas nas janelas vermelhas do crepúsculo;
e quero ir outra vez para casa. Como das outras vezes.
Assim me faço ao sono, noite após noite, desfiando a lenta
meada dos dias para descontar a espera. E, quando as crias
afastarem finalmente as asas da quilha no seu primeiro voo,
por certo estarei ainda aqui, mas poderei dizer que, pelo
menos uma ou outra vez, já mandei os recados, já da minha
boca ouvi estas palavras, voltes ou não voltes.
Maria do Rosário Pedreira, in 366 Poemas Que Falam de Amor
quarta-feira, 18 de abril de 2012
Um dia...
e há um vento que leva a poeira
das nossas vidas cada vez mais
longe
Um dia fica apenas esse rosto
o mais amado rosto ainda à procura
do verão que nunca vimos
da espuma das promessas ou das últimas
lágrimas
Um dia despedimo-nos de um sonho
e o mundo é um murmúrio quase mudo
um resto de acidente luminoso
no horizonte azul vermelho roxo negro
Fernando Pinto do Amaral, "Horizonte" in Poemas Escolhidos
terça-feira, 17 de abril de 2012
No respirar da noite
eu aqui estou. Toma-me, noite,
sem sombra de amargura,
consciente do que dou.
Nimba-te de mim e de luar.
Disperso em ti serei mais teu.
E deixa-me derramado no olhar
de quem já me esqueceu.
Eugénio de Andrade, in As Mãos e os Frutos
sábado, 14 de abril de 2012
Palavras de Amor
No fundo, as relações entre mim e ti
cabem na palma da mão:
onde o teu corpo se esconde e
de onde,
quando sopro por entre os dedos,
foge como fumo
um pequeno pássaro,
ou um simples segredo
que guardávamos para a noite.
Nuno Júdice, "Um Outro Poema de Amor" in O Movimento do Mundo
sexta-feira, 13 de abril de 2012
Cá dentro
Um desejo de lisura e branco,
Um arco que se curve - até que o pranto
De todas as palavras me liberte.
Sophia de Mello Breyner Andresen
segunda-feira, 9 de abril de 2012
A Vertigem do Abismo
Quando há muito tempo apenas via
mil vezes repetida a tua imagem
num écran do passado, talvez fosse
feliz. A minha alma
nascera de si mesma nesse abismo
e obedecia desde sempre ao lume
do teu rosto - relâmpago
tão de súbito aceso nos meus olhos.
Atravessei contigo, sem saberes,
a música dos dias sem ninguém,
o naufrágio dos anos submersos
pela vida real irreal,
por falsas euforias que pareciam
acender outra chama na febre das noites,
inventar mil desejos onde só havia
um coágulo de luz adolescente
e um coração de cinza, o meu, adormecido
no fundo desse poço onde brilhava
o assombro mortal do teu olhar.
Agora que regresso por um sonho
às sonâmbulas ruas da cidade
sou eu e não sou eu
esta sombra sem nome que estremece
ao selar esse pacto
ao encontrar o último refúgio
na flor da tua boca. Não há lágrimas
que nos calem o peito? Não há vidas
que nos salvem da vida?
Fernando Pinto do Amaral, in Poemas Escolhidos
sábado, 7 de abril de 2012
Páscoa Feliz!
Abra as janelas e deixe o vento entrar em sua casa. Caminhe descalço, sinta o chão debaixo dos seus pés. Beije quem ama. Faça um telefonema para ouvir uma voz de que sente tanta saudade. Escreva aos que estão longe. Abrace os que estão perto. Ouça uma música inesquecível, releia os versos do seu poema preferido. Ponha flores frescas no jazigo dos seus mortos. Respire mais fundo, mais devagar... sinta o bater do seu coração.
E tenha uma Páscoa feliz, cheia de paz. Cheia de amor.
sexta-feira, 6 de abril de 2012
terça-feira, 3 de abril de 2012
Na cegueira do olhar
Não digo que te amei por ter possuído o teu corpo, mas sim por ter roçado a tua alma. Se pudesse estar apenas perto de ti, a ouvir a tua voz e a demorar o meu olhar sobre o teu, ter-te-ia amado na mesma... Fiquei presa no que está para lá do visível; enredada entre as folhas da tua verdadeira essência.
Possidónio Cachapa, in Segura-te ao meu peito em chamas
domingo, 1 de abril de 2012
Palavras de água
subitamente
se faz água no teu peito,
e a noite se faz barco,
e a minha mão marinheiro.
Eugénio de Andrade, in As Mãos e os Frutos
Subscrever:
Mensagens (Atom)