quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Eras tu

Eras tu, que eu sei. Sinto-te muitas vezes perto de mim, segues-me pela casa e quase consigo ouvir-te conversar com as plantas como dantes fazias. Sei que és tu, porque prometeste que para sempre velarias o meu sono e os meus sonhos. E tu nunca me mentiste, nunca faltaste a uma promessa.Vejo muitas vezes a forma silenciosa do teu corpo desenhando a ternura e a saudade no sofá da sala, a tua mão que afasta os cortinados suavemente para deixar entrar mais luz e escutar as aves. Hoje eras tu, que eu sei. Senti a tua mão pousada no meu ombro, pressionando-me ligeiramente a curva do pescoço, expulsando as coisas más que eu trazia no peito, obrigando-me a suster a respiração e a pensar nas palavras antes de as dizer de enxurrada, como um rio destruidor cheio de lama. Eras tu. És sempre tu, de todas as vezes, no roçagar das folhas das plantas, nos olhos fixos e atentos do gato, nos passos vagarosos na escadaria, pisando com mais lentidão o degrau que range e te denuncia, são os teus braços na bacia cheia de roupa que se torna subitamente mais leve quando arranco à pressa a roupa do varal debaixo de chuva. És tu, que eu sei. Sempre soube que eras tu quem abria as gavetas e as portas dos armários, quem me segura a mão evitando o excesso de açucar quando estou a fazer bolos, quem apaga as luzes que distraidamente vou deixando acesas atrás de mim. E hoje eras tu, de novo. Sei que eras porque senti-o nas tuas mãos quando as pousaste em mim com ternura, senti o inesquecível cheiro a alfazema que trazias sempre agarrado à pele, como se pertencesses às coisas lindas do mundo, como se fosses também tu, apenas brisa, apenas mar, apenas flor, apenas ave, apenas nuvem.

domingo, 25 de setembro de 2011

Palavras desertas

Es una calle larga e silenciosa.
Ando en tinieblas y tropiezo e caigo
y me levanto y piso con pies ciegos
las piedras mudas y las hojas secas
y alguien detrás de mí también las pisa:
si me detengo, se detiene;
si corro, corre. Vuelvo el rostro: nadie.
Todo está oscuro y sin salida,
y doy vueltas e vueltas en esquinas
que dan siempre a la calle
donde nadie me espera ni me sigue,
donde yo sigo a um hombre que tropieza
y se levanta y dice al verme: nadie.

Octavio Paz, La Calle

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Um abraço. Para sempre.

Para sempre me ficou esse abraço. Por via desse cingir de corpo minha vida se mudou. Depois desse abraço, trocou-se, no mundo, o fora pelo dentro. Agora, é dentro que tenho pele. Agora, meus olhos se abrem apenas para as funduras da alma. Nesse reverso, a poeira da rua me suja é o coração. Vou perdendo noção de mim, vou desbrilhando. E se eu peço que ele regresse é para sua mão peroleira me descobrir ainda cintilosa por dentro. Todo este tempo me madreperolei, me enfeitei de lembrança.

Mia Couto, Na Berma de Nenhuma Estrada

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Palavras tristes

se envelhecesses a meu lado, cedo perceberias
que nunca fui digno do teu rosto ou da tua ternura.
é isto que penso quando me lembro que partiste.

José Luís Peixoto, A casa, a escuridão

sábado, 17 de setembro de 2011

Less is more

Os orientais têm razão, cada vez me convenço mais disto, sobretudo nestas alturas, em que à semelhança de uma alergia ou febre dos fenos tardia, sou violentamente possuída pela doença das limpezas e arrumações. E desato a abrir gavetas, armários, roupeiros, caixas abandonadas cobertas de pó, sacas com coisas religiosamente guardadas porque podem vir a ser úteis para alguma coisa... Mas depois nunca o são. Depois estão tão bem guardadas que nem sequer sei que as tenho. E percebo que encho a casa com coisas que tenho pena de perder, recordações, roupa que talvez volte a servir ou a usar-se, calçado que quem sabe, um dia deixará de me magoar... Os orientais estão certos. Preciso cada vez de menos coisas para ser feliz, cada vez compro menos e valorizo mais o que não está à venda... 
E ando irritada com tudo isto, afogada em tralha, em armários caóticos, em espaços sobrelotados que me roubam o ar para respirar... Está decidido... Vou desfazer-me de tudo o que é inútil, de tudo o que não preciso, de tudo o que está velho, gasto, partido, fora de uso, de tudo o que não gosto, me aperta e me magoa.
Depois, vou sentar-me descalça a saborear uma música, um poema, um café ou um licor doce, com a janela escancarada sobre o jardim que me trará o cheiro da relva e das flores, o canto dos pássaros, a voz do vento, ou o riso dos meus filhos...
E a seguir, talvez faça o mesmo com o coração... Também ele anda sufocado e a precisar de limpezas gerais.  

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Faz vento lá fora

não estou certo de nada. gostava, contudo,
de acreditar que existes, para te esperar
sem angústia, talvez pôr a música mais baixo, ouvir
os vizinhos a conversar, preparar coisas para te
dizer, ler um livro, vestir-me. gostava de ter
por ti um amor convencional, sem ter de o
imaginar. com um jantar pelo meio, um passeio
no mais popular do parque, a ver cisnes e a
fugir dos cavalos. mas não estou certo de nada, e
mais fácil é fechar as portadas, escolher um cobertor
quente e fazer com que vente mais e mais lá fora

valter hugo mãe

Em Português

E pronto, não posso adiar mais. Hoje é o primeiro dia de aulas e a partir de agora é impositivo que se use o novo Acordo Ortográfico da língua portuguesa em todas as escolas do país. Aos meus leitores peço paciência porque sei que vou falhar muitas vezes, vou cometer erros, ou não fossem os hábitos de uma vida inteira tão difíceis de mudar...
A vantagem (tão boa!) é que já não existe o português de Portugal nem o português do Brasil... Existe apenas a nossa língua, a língua portuguesa, belíssima nos seus acordes, na sua sonoridade, cheia de melodia e de doçura, como um poema...! Agora existe apenas uma língua com uma literatura riquíssima a unir 273 milhões de falantes em todos os cantos do mundo. Levada deste cantinho pelos marinheiros portugueses na era dos Descobrimentos, a língua de Camões dispersou-se, uniu os continentes e é hoje a sexta mais falada no mundo e uma das línguas oficiais da União Europeia. Espero não a desrespeitar nunca nos meus textos cometendo erros grosseiros e é com humildade que agradeço aos visitantes deste espaço todas as correções que se impuserem.
E agora, que estamos todos de Acordo, vamos lá escrever em português :) 

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Preciso de escrever-te

... tenho sentido a tua ausência nas palavras que não te escrevo. Trabalho, muito, distracções várias, preocupações mil que me afastam de ti. Nas palavras quero dizer. Em pensamento, tu a interromperes-me as manhãs as tardes as noites. As mesmas manhãs tardes noites que não te escrevo. Sinto-te na ausência do que não digo. Preciso de escrever-te.
Repito: preciso de escrever-te.

Paulo Ferreira, Cartas a Mónica

Deixa o mar na pele


E quando eu me lembrava de que no dia seguinte o mar se repetiria para mim, eu ficava séria de tanta ventura e aventura. Meu pai acreditava que não se devia tomar logo banho de água doce: o mar devia ficar na nossa pele por algumas horas. Era contra a minha vontade que eu tomava um chuveiro que me deixava límpida e sem o mar. A quem devo pedir que na minha vida se repita a felicidade? Como sentir com a frescura da inocência o sol vermelho se levantar? Nunca mais? Nunca mais. Nunca.

Clarice Lispector, Banhos de Mar

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Basta que existas


Hoje escrevo-te em papel timbrado por um chão de ardósia.
Entra por esta folha ensina-me a mudar a página dos teus olhos.
Diz-me que o meu nome não é um borrão sobre os dias.
Não preciso que me vejas basta que me encontres no berço das quimeras.
Não necessito que me abraces num solo calcinado de promessas.
Basta que leias no olhar enxuto do poema.
Se o amor é uma rosa-dos-ventos basta que existas em todas as latitudes.

Alberto Serra, Obra Poética

Deste pulsar tranquilo

Os turistas partiram. Finalmente vazia, a cidade volta a ser nossa, espreguiçando-se ao sol brilhante deste Setembro enlouquecido de vento quente e mar tão morno. Na areia abandonada das pegadas dos caminhantes, as gaivotas olham serenas o horizonte azul, também elas reconciliadas com a pequenez desta cidade que respira silenciosa, apaziguada com as rotinas suaves de uma terra costeira. Os sons são já os nossos, os de sempre, os passeios vazios convidam aos passos junto ao mar e os que se amam beijam-se na boca, invisíveis como barcos ancorados na quietude do cais... Ouve-se de novo o mar... Fecho os olhos que cegam com o brilho dourado da manhã... E belíssima, a cidade pulsa tranquila, sorrindo feliz neste regresso a nós.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

O mar é o coração duma mulher

No amor há um mar revolto.
Abrasadores, os sentidos irrompem
do vazio.
Um gato dorme sobre o piano.
Corre as cortinas à morte
do que sente:
um banco vazio no escurecer
da sua clausura.
Os vultos das gaivotas perdem-se
nas janelas
e o mar é o coração duma mulher.

Eduardo Bettencourt, "Corre as cortinas à morte do silêncio" in Um dia qualquer em Junho

domingo, 11 de setembro de 2011

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

E agora?


Não, nunca parti... Foi sempre aqui que eu estive, perdida em cumeadas de silêncio olhando os rostos tristes dos girassóis das palavras, perseguindo em vão um texto qualquer... Estive aqui juntando frases em absurdos narrativos, procurando numa luta inglória o ponto final, vendo passar silhuetas de versos intranquilos na melancolia quieta das madrugadas mornas. Nunca parti, sabes? E reparei até no findar do Verão... Por isso precisava das palavras para pintar os ecos dos passos serenos, tão seguros, deste Outono que vem caminhando cá dentro... Mas rasguei-lhes o ventre macio, calei-lhes a voz e não consigo escrever... Já não sei escrever...
E agora? Quem me conta o que acontece em mim?